Jornal Estado de Minas

Pelo direito à autenticidade

Transexuais falam sobre preconceito, desinformação e entraves burocráticos

Para a medicina, o transexual tem uma doença chamada disforia de identidade de gênero. O processo jurídico para alteração do documento de identidade pode demorar de seis meses a um ano

Luiz Othavio Gimenez Sandra Kiefer - Especial para o EM
"As pessoas dificilmente desconfiam que sou transexual. Por um lado, quando você se impõe, tudo flui tranquilo e as coisas se tornam naturais" (Anna Valentina) - Foto: Ramon Lisboa/EM/D.A.Press

Uma moça meiga e uma mulher quase feita. Um sorriso tímido, bochechas rosadas e uma ruivice que chama a atenção. Anna Valentina Lobato, de 22 anos, é macapaense, mas se sente em casa no apartamento onde vive, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. “Sou tecnicamente perturbada”, afirma ela, debochando. A afirmativa se refere à Classificação Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saúde (CID), com a qual Anna se sente frustrada. “Como transexual, para a medicina tenho uma doença: disforia de identidade de gênero”. Mas a biologia pouco importa para ela. As vezes em que a sua feminilidade foi colocada em pauta, ela não hesitou em se afirmar como uma mulher genuína.
“Sou uma mulher de verdade. Fico questionando como é ser uma mulher de mentira. Isso não existe”. Quem é capaz de discordar dela?

Anna Valentina tem a mesma estirpe da mineira Lea T., a top model transexual que ficou famosa mundialmente em 2010 ao estampar a capa da revista francesa Vogue. Nas redes sociais, Anna faz pose, divulgando sua beleza inquestionável, além de militar a favor das transexuais e travestis. “Tenho me politizado mais, buscando a legitimidade da classe”, declara. Ela conta que para se sentir confortável com a exposição, um processo árduo de autoconhecimento foi precedido. Tudo começou com a moda da calça skinny: tratou de comprar logo um par delas, acompanhado de alguns itens de maquiagem. Aos 18 anos, quando cursava o curso de design de produto e gráfico, ainda em Macapá (AP), Anna deixou o cabelo crescer até a altura do maxilar, em um dos primeiros atos de manifestação visual. “Na faculdade a maioria das pessoas me tratava no feminino, com exceção dos professores. Vi como má vontade. Meu nome é Anna Valentina”.

A moça chegou em Belo Horizonte em janeiro de 2013 em busca de independência dos pais, quando tinha 20 anos. A faceta feminina estava mais evidente: o cabelo, tingido de loiro-platinado, estava abaixo dos ombros, e o batom vermelho era como seu melhor amigo quando combinado a peças de roupas retrô.
E Anna buscava seu lugar na sociedade de forma retraída, passando despercebida diante dos olhares preconceituosos. “As pessoas dificilmente desconfiam que sou transexual. Por um lado, quando você se impõe, tudo flui tranquilo e as coisas se tornam naturais. Mas por outro, se eu simplesmente me fundir às outras mulheres, como vou buscar meus direitos como mulher trans? Quero que todas possam conviver em sociedade sem o risco de ser linchadas”, questiona ela, que está aguardando o procedimento para alteração do nome no registro civil.

JUSTIÇA LENTA O processo jurídico para alteração do documento de identidade pode demorar de seis meses a um ano. “É preciso fazer várias comprovações de que você é você”, expõe a moça. Anna já apresentou a documentação necessária na Defensoria Pública de Belo Horizonte para a troca oficial do nome, e acredita que este é um dos passos mais importantes para a sua legitimidade como mulher.

O universitário mineiro Raul Avlis, de 22, também busca autenticidade. Embora já tenha extrapolado a maioridade, ele evita frequentar lugares onde seja obrigado a apresentar a carteira de identidade. Da última vez em que isso aconteceu, quase foi barrado no baile de formatura do ensino médio. Se ser jovem significa finalmente atingir a idade certa para se jogar nas baladas, tirar carteira de motorista, entrar na universidade e assistir a filmes antes proibidos, nada disso é possível para o rapaz. No grande dia do baile de formatura, Raul se arrumou todo para a festa, com a melhor camisa e calça social.
Na portaria, entretanto, o segurança não queria autorizar sua entrada. Ao conferir o RG, estranhou ver a foto de uma mulher ao lado do nome feminino de batismo. “O guarda olhava para mim, depois checava o RG. Tornava a me olhar e conferia a carteira. Por fim, começou a questionar se eu era eu mesmo”, conta ele, que prevendo possíveis constrangimentos, chegou a cogitar se ausentar da própria formatura.

Os transexuais se definem como pessoas que nasceram com a mente masculina no corpo de uma mulher, ou vice-versa. A proporção reconhecida pelos estudiosos seria de 1/20 mil pessoas do gênero masculino para feminino (MtF, expressão que vem do inglês male to female), que significa “de homem para mulher”. Em menor número estão casos como o de Raul, 1/50 mil, que vão do feminino para o masculino. “Desde cedo sempre tive esse jeito mais moleque. Aos 4 anos, parei de usar vestidos e ficava jogando bola com os meninos”, conta o jovem, que nasceu em uma pequena cidade do interior mineiro e se assumiu como transhomem ao se mudar para BH, há dois anos.

Por falta de recursos financeiros, Raul ainda não se submeteu a tratamentos com hormônios para adquirir características ainda mais masculinas, tais como abdômen mais largo e pelos no rosto. Sua voz engrossou naturalmente e o jeito de andar é bem viril. No entanto, nem mesmo as tatuagens fortes, o estilo largado de vestir e o piercing no lóbulo da orelha esquerda passam o recado desejado. Ele ainda enfrenta contratempos no cotidiano. Comprar roupas tornou-se sinônimo de sofrimento. “Nas lojas de departamentos, as vendedoras sempre me levam para a ala feminina. Com calma, explico que quero ir para a seção masculina, mas outro dia uma senhora me indicou uma blusa rosa, cheia de decote e babados. Não sei o que ela pensou. Talvez estivesse querendo me salvar, levar para o bom caminho”, ironiza, sem disfarçar a tristeza.

Refém da boa vontade


A maior luta de Raul Avlis tem sido ser reconhecido como homem no curso de história da PUC Minas, onde se matriculou este ano. Ele é o segundo transexual a tentar ser chamado pelo nome social no Instituto de Ciências Humanas, no câmpus Coração Eucarístico, Região Noroeste de BH. O primeiro pedido partiu da transmulher Rita Elizabeth, que, desde 2013, tenta ter o nome social reconhecido na chamada, provas e trabalhos, ainda sem resultado. No caso dela, toda vez que entra um novo professor no curso Rita entrega uma carta em mãos explicando a sua condição. “Se acontecer de não me chamarem pelo nome social, ignoro a chamada e depois da aula converso com o professor. Fico refém da boa vontade e da memória de cada um, pois meu verdadeiro nome não está escrito nos documentos da universidade”, afirma. Há 15 dias, a ouvidoria da PUC respondeu à solicitação de Raul. “Se fosse da minha vontade usar o nome social, o coordenador do curso marcaria uma reunião com todos os professores, mas dependeria de cada um deles aceitar ou não”, diz o estudante. Segundo Carla Ferretti Santiago, diretora do Instituto de Ciências Humanas, não há restrição de parte da universidade em relação à aceitação de alunos transgêneros. Diante da solicitação de dois alunos para que o nome social apareça na lista de chamada, o assunto foi levado à análise da reitoria. “Não se pode adulterar aleatoriamente a lista de chamada, que serve como um documento para o aluno, do ponto de vista jurídico”, explica Carla. Segundo a diretora, algumas universidades públicas estão resolvendo o impasse colocando o nome social entre parênteses na chamada. A reportagem do Estado de Minas tentou conversar com os responsáveis pelas relações estudantis e assessoria de imprensa da PUC Minas, mas não obteve retorno.

Diante das dificuldades da PUC em lidar com a questão, Raul tomou a liberdade de conversar com cada um dos professores. Dos sete, conseguiu até agora falar em particular com cinco e teve apenas uma recusa parcial. “Uma das professoras me trata super bem em sala de aula, mas disse que iria fazer a chamada usando a primeira sílaba do nome que consta no meu registro. Ela disse que isso seria o máximo que poderia ser feito para não me constranger”, diz. Digamos que o nome de registro de Raul fosse Berenice, a professora pronuncia “Beré” e fica aguardando a resposta para ver se o aluno está presente nas dependências da sala.

Em relação aos colegas de turma, Raul encontrou resistência praticamente nula. No abaixo-assinado em sala de aula, dos 60 alunos presentes somente dois deixaram de assinar a lista. Ao ser informados sobre o que estava ocorrendo, alguns chegaram a pedir desculpas a Raul por terem se referido a ele anteriormente no pronome feminino. Se prosseguir até o fim do curso, conseguindo se formar, o rapaz pretende se tornar professor . “Se conseguir realizar meu objetivo e um dia receber uma aluna ou um aluno transexual, vou chamá-lo da forma que ele preferir ser identificado, além de oferecer o meu apoio. Para mim, é esse o principal papel de um professor na sociedade”, ensina..