Uma moça meiga e uma mulher quase feita. Um sorriso tímido, bochechas rosadas e uma ruivice que chama a atenção. Anna Valentina Lobato, de 22 anos, é macapaense, mas se sente em casa no apartamento onde vive, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. “Sou tecnicamente perturbada”, afirma ela, debochando. A afirmativa se refere à Classificação Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saúde (CID), com a qual Anna se sente frustrada. “Como transexual, para a medicina tenho uma doença: disforia de identidade de gênero”. Mas a biologia pouco importa para ela. As vezes em que a sua feminilidade foi colocada em pauta, ela não hesitou em se afirmar como uma mulher genuína.
Anna Valentina tem a mesma estirpe da mineira Lea T., a top model transexual que ficou famosa mundialmente em 2010 ao estampar a capa da revista francesa Vogue. Nas redes sociais, Anna faz pose, divulgando sua beleza inquestionável, além de militar a favor das transexuais e travestis. “Tenho me politizado mais, buscando a legitimidade da classe”, declara. Ela conta que para se sentir confortável com a exposição, um processo árduo de autoconhecimento foi precedido. Tudo começou com a moda da calça skinny: tratou de comprar logo um par delas, acompanhado de alguns itens de maquiagem. Aos 18 anos, quando cursava o curso de design de produto e gráfico, ainda em Macapá (AP), Anna deixou o cabelo crescer até a altura do maxilar, em um dos primeiros atos de manifestação visual. “Na faculdade a maioria das pessoas me tratava no feminino, com exceção dos professores. Vi como má vontade. Meu nome é Anna Valentina”.
A moça chegou em Belo Horizonte em janeiro de 2013 em busca de independência dos pais, quando tinha 20 anos. A faceta feminina estava mais evidente: o cabelo, tingido de loiro-platinado, estava abaixo dos ombros, e o batom vermelho era como seu melhor amigo quando combinado a peças de roupas retrô.
JUSTIÇA LENTA O processo jurídico para alteração do documento de identidade pode demorar de seis meses a um ano. “É preciso fazer várias comprovações de que você é você”, expõe a moça. Anna já apresentou a documentação necessária na Defensoria Pública de Belo Horizonte para a troca oficial do nome, e acredita que este é um dos passos mais importantes para a sua legitimidade como mulher.
O universitário mineiro Raul Avlis, de 22, também busca autenticidade. Embora já tenha extrapolado a maioridade, ele evita frequentar lugares onde seja obrigado a apresentar a carteira de identidade. Da última vez em que isso aconteceu, quase foi barrado no baile de formatura do ensino médio. Se ser jovem significa finalmente atingir a idade certa para se jogar nas baladas, tirar carteira de motorista, entrar na universidade e assistir a filmes antes proibidos, nada disso é possível para o rapaz. No grande dia do baile de formatura, Raul se arrumou todo para a festa, com a melhor camisa e calça social.
Os transexuais se definem como pessoas que nasceram com a mente masculina no corpo de uma mulher, ou vice-versa. A proporção reconhecida pelos estudiosos seria de 1/20 mil pessoas do gênero masculino para feminino (MtF, expressão que vem do inglês male to female), que significa “de homem para mulher”. Em menor número estão casos como o de Raul, 1/50 mil, que vão do feminino para o masculino. “Desde cedo sempre tive esse jeito mais moleque. Aos 4 anos, parei de usar vestidos e ficava jogando bola com os meninos”, conta o jovem, que nasceu em uma pequena cidade do interior mineiro e se assumiu como transhomem ao se mudar para BH, há dois anos.
Por falta de recursos financeiros, Raul ainda não se submeteu a tratamentos com hormônios para adquirir características ainda mais masculinas, tais como abdômen mais largo e pelos no rosto. Sua voz engrossou naturalmente e o jeito de andar é bem viril. No entanto, nem mesmo as tatuagens fortes, o estilo largado de vestir e o piercing no lóbulo da orelha esquerda passam o recado desejado. Ele ainda enfrenta contratempos no cotidiano. Comprar roupas tornou-se sinônimo de sofrimento. “Nas lojas de departamentos, as vendedoras sempre me levam para a ala feminina. Com calma, explico que quero ir para a seção masculina, mas outro dia uma senhora me indicou uma blusa rosa, cheia de decote e babados. Não sei o que ela pensou. Talvez estivesse querendo me salvar, levar para o bom caminho”, ironiza, sem disfarçar a tristeza.
Refém da boa vontade
A maior luta de Raul Avlis tem sido ser reconhecido como homem no curso de história da PUC Minas, onde se matriculou este ano. Ele é o segundo transexual a tentar ser chamado pelo nome social no Instituto de Ciências Humanas, no câmpus Coração Eucarístico, Região Noroeste de BH. O primeiro pedido partiu da transmulher Rita Elizabeth, que, desde 2013, tenta ter o nome social reconhecido na chamada, provas e trabalhos, ainda sem resultado. No caso dela, toda vez que entra um novo professor no curso Rita entrega uma carta em mãos explicando a sua condição. “Se acontecer de não me chamarem pelo nome social, ignoro a chamada e depois da aula converso com o professor. Fico refém da boa vontade e da memória de cada um, pois meu verdadeiro nome não está escrito nos documentos da universidade”, afirma. Há 15 dias, a ouvidoria da PUC respondeu à solicitação de Raul. “Se fosse da minha vontade usar o nome social, o coordenador do curso marcaria uma reunião com todos os professores, mas dependeria de cada um deles aceitar ou não”, diz o estudante. Segundo Carla Ferretti Santiago, diretora do Instituto de Ciências Humanas, não há restrição de parte da universidade em relação à aceitação de alunos transgêneros. Diante da solicitação de dois alunos para que o nome social apareça na lista de chamada, o assunto foi levado à análise da reitoria. “Não se pode adulterar aleatoriamente a lista de chamada, que serve como um documento para o aluno, do ponto de vista jurídico”, explica Carla. Segundo a diretora, algumas universidades públicas estão resolvendo o impasse colocando o nome social entre parênteses na chamada. A reportagem do Estado de Minas tentou conversar com os responsáveis pelas relações estudantis e assessoria de imprensa da PUC Minas, mas não obteve retorno.
Diante das dificuldades da PUC em lidar com a questão, Raul tomou a liberdade de conversar com cada um dos professores. Dos sete, conseguiu até agora falar em particular com cinco e teve apenas uma recusa parcial. “Uma das professoras me trata super bem em sala de aula, mas disse que iria fazer a chamada usando a primeira sílaba do nome que consta no meu registro. Ela disse que isso seria o máximo que poderia ser feito para não me constranger”, diz. Digamos que o nome de registro de Raul fosse Berenice, a professora pronuncia “Beré” e fica aguardando a resposta para ver se o aluno está presente nas dependências da sala.
Em relação aos colegas de turma, Raul encontrou resistência praticamente nula. No abaixo-assinado em sala de aula, dos 60 alunos presentes somente dois deixaram de assinar a lista. Ao ser informados sobre o que estava ocorrendo, alguns chegaram a pedir desculpas a Raul por terem se referido a ele anteriormente no pronome feminino. Se prosseguir até o fim do curso, conseguindo se formar, o rapaz pretende se tornar professor . “Se conseguir realizar meu objetivo e um dia receber uma aluna ou um aluno transexual, vou chamá-lo da forma que ele preferir ser identificado, além de oferecer o meu apoio. Para mim, é esse o principal papel de um professor na sociedade”, ensina..