A desavença entre um motociclista e um empresário no trânsito de Belo Horizonte, há duas semanas, por pouco não terminou em tragédia. Irritado com as manobras de um motorista de um Peugeot 408 branco pela Avenida Barão Homem de Melo, Oeste da capital, o condutor da moto deu um chute no retrovisor do veículo, mas acabou caindo no asfalto e só não foi esmagado pelo carro que vinha atrás porque o sinal tinha acabado de fechar. Flagrada por uma câmera de celular, a confusão já foi vista por mais de 660 mil pessoas na internet e chama a atenção para uma situação que especialistas e autoridades classificam como preocupante.
Estressados e tensos, muitos motoristas transformam seus veículos em proteção ideal para se comportar de forma hostil, sob a ótica de que são onipotentes. A reportagem do Estado de Minas conversou com o motorista que teve o carro chutado na Barão e com o outro, que filmou toda a ação. Junto a personagens de outros dois casos que aconteceram nas ruas de BH em 2013, eles entendem que o trânsito está cada vez mais explosivo e é necessário manter a calma para não ser surpreendido.
“Percebi que ele gesticulava muito em minha direção. Começou a travar a minha passagem e, quando deu espaço, passei e fui embora. De repente, ele veio para o meu lado e eu só escutei o barulho. Pensei que tivesse batido acidentalmente”, afirma o empresário José Carlos da Cruz, de 68 anos. Essa é a versão dele para o conflito com o piloto de uma moto que aconteceu em 9 de março no Bairro Estoril, Oeste de BH. Ao rever o vídeo de um minuto e seis segundos, José Carlos diz que não quis fechar a moto. Ele conta que uma mudança de faixa pode ter causado a ira do motociclista, mas alega que não havia razão para o tamanho da reação. “No primeiro movimento, saí para a faixa do lado normalmente, com espaço suficiente para a moto transitar. No segundo, mais brusco, aproveitei uma brecha e acelerei para ir embora e ficar livre daquela situação, pois ele já estava me travando e gesticulando”, afirma.
Depois da queda, José Carlos conta que o motociclista se levantou e foi até sua janela. “Ele veio de uma forma que achei que ia bater o capacete no vidro, mas depois sossegou e foi embora. Como não se machucou, também segui o meu caminho e não houve registro policial”, afirma o dono de uma empresa de representação comercial. José Carlos admite que ficou extremamente incomodado com a situação e que o susto serviu para uma mudança. “Com a cabeça mais fria, percebi que tudo pode acontecer em questão de segundos. Daqui para frente, terei mais cuidado. As pessoas têm que ser mais cuidadosas, pois percebo muita intolerância e irritação”, reflete. A reportagem não localizou o piloto da moto envolvido na confusão.
AGRESSÃO E MORTE Há dois anos o coordenador administrativo do Hospital das Clínicas da UFMG, Eduardo Gontijo, de 38, perdeu a mulher Luciana Silva Martins Costa, de 38, de uma forma estúpida. “Minha sogra contou que elas seguiam para um shopping em Venda Nova quando um motoqueiro começou a chutar o carro. Pode ser que ela tenha o fechado, não se sabe. Mas ele a acertou com um soco e, como ela já tinha problemas cardíacos, acabou falecendo”, conta Eduardo. Ajudando a filha de 7, que presenciou a agressão, a superar a perda da mãe, ele se mostra sem esperança de mudança de comportamento de quem dos motoristas. “Temos que dirigir para nós e para o outro. E mesmo assim precisamos torcer para ninguém esbarrar, bater ou cismar com a gente. Em um contexto de tanto estresse, qualquer coisa serve de estopim para uma briga”, afirma.
O professor Fábio Belo, coordenador do curso de Psicologia da UFMG, diz que, para a psicanálise, todas as pessoas guardam fantasias e afetos no inconsciente. “O trânsito é um dos lugares que dá oportunidade para que essas fantasias se manifestem. Dentro de um carro ou em uma moto temos uma sensação de extensão do corpo. Achamos que somos mais fortes ou que estamos mais protegidos, dando liberdade para uma sensação de que somos onipotentes”, afirma o professor.
Belo lembra que a situação inspira cuidados, pois o trânsito é um lugar em que as pessoas passam cada vez mais tempo. “Estamos deixando aparecer um sadismo de maneira muito rápida e sem reflexão como resposta ao estresse e a impotência causada pelas dificuldades do trânsito”, completa o especialista.
O major Gilmar Luciano, assessor de imprensa da Polícia Militar, acredita que os motociclistas normalmente se envolvem mais nesse tipo de problema. “Eles são os maiores violadores do trânsito. Desrespeitam mais do que os carros de passeio. É um veículo que quer mais agilidade e isso não significa que tem preferência sobre os demais”, afirma o major. “Com o aumento gradativo da nossa frota, os problemas também cresceram de forma proporcional. Consequentemente, aumentaram consideravelmente as chamadas em virtude das desavenças no tráfego”, informa o militar.
Muito bate-boca e costelas quebradas
As imagens captadas pelas câmeras de segurança de uma loja assustaram a população de Belo Horizonte em julho de 2013. O motociclista Elson Ferreira de Jesus, de 52 anos, e o empresário Armando Monducci Filho, de 58, discutiram por causa de um acidente de trânsito. Armando acabou levando a pior. Surpreendido pela raiva do motociclista, que era inabilitado, ele foi atingido com cinco pauladas no meio da rua. O resultado foram nove costelas quebradas e um trauma toda vez que sai de carro nas ruas da capital mineira. “Hoje, tenho muito mais medo em andar de carro. Não sou o mesmo motorista que eu era há dois anos”, desabafa Armando.
O empresário conta que em 17 de julho de 2013 seguia pela Via do Minério, na Região do Barreiro, quando reduziu a velocidade para entrar em uma rua à esquerda. O motociclista vinha no sentido contrário e acabou atingindo a lateral da caminhonete dirigida por Armando. “Ele veio me xingando e dizendo que eu deveria pagar a moto. Puxei o carro para frente e encostei, momento em que ele veio junto e continuou me ofendendo. Eu disse que chamaria a polícia para registrar a ocorrência, mas ele se descontrolou ainda mais e pegou um pedaço de pau em um lote vago do outro lado da rua”, conta o empresário.
Os dois se enroscaram e caíram no chão, mas Elson se levantou e agrediu o motorista da caminhonete brutalmente com cinco pauladas, antes de ser impedido por pessoas que passavam no local. O agressor também acabou agredido por populares. “Até hoje ainda sinto dor nas costelas. O pior é que a gente nunca esquece o que aconteceu. As pessoas estão muito intolerantes e sem educação. Tudo começa pela falta de respeito em geral na sociedade”, reclama Armando. Elson foi preso em flagrante por tentativa de homicídio. A reportagem procurou a Polícia Civil, mas a corporação não informou a situação atual do caso. O motociclista também foi procurado, mas não retornou as ligações.
GENTILEZA Para a coordenadora de Educação de Trânsito do Departamento Estadual de Trânsito de Minas Gerais (Detran/MG), Maria Cecília Lopes de Abreu, essa situação de conflito é cada vez mais comum. “O veículo dá uma sensação individual de status e de poder. Porém, a rua é um local público e democrático, de uso comum. Quando essa questão particular é levada a um espaço de convivência, é que aparece o problema”, diz . Ela conta ainda que um dos objetivos do Detran é disseminar junto a professores conteúdos que destacam que o trânsito é um ambiente primordial para as pessoas exercerem a condição de cidadãos. “Você tem que ser gentil, educado, paciente e deve saber controlar suas emoções. Qualquer atitude agressiva deve ser seguida de um momento de reflexão”, completa.
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