A rotina de ameaças e a grande extensão do controle do tráfico de drogas sobre comunidades onde essas quadrilhas agem ficam evidentes com o acompanhamento das transmissões da rede de rádio das bocas de fumo. Com o acesso às gravações da comunicação feita pela quadrilha que domina a Vila Marçola, no Aglomerado da Serra, Zona Centro-Sul de BH, a reportagem do Estado de Minas constatou que o domínio pela força abrange desde o trânsito dentro da favela a ações contra a polícia até a intimidação a trabalhadores que usam equipamentos de rádio para o exercício de suas atividades profissionais.
Durante a manhã e a tarde as transmissões ocorrem em intervalos mais longos, de cinco a 10 minutos, e à noite a troca de informações é mais constante, abaixo de cinco minutos. A principal preocupação dos informantes é detalhar a situação nos pontos de vigilância espalhados pelo aglomerado, para que a central dos criminosos, na Praça do Cardoso, a “Praça 7”, saiba se a polícia os ameaça.
Ao analisar as gravações, a reportagem conseguiu identificar cinco grandes pontos fixos de monitoramento, cinco sentinelas chamados pelos apelidos e nomes e até um dos gerentes da boca de fumo, de nome Bebezão ou Bebêzinho.
Traficantes vigiam boca de fumo. Ouça as gravações.
Quando não há ameaças às rotas que levam às bocas de fumo, os traficantes dizem que está tudo “suave”, ou que “não passa nada para ninguém”. Esses informes são sistemáticos e os gerentes do tráfico ameaçam os sentinelas que se desviam das funções. Numa das transmissões, Bebezão repreende o sentinela apelidado de Limão. “Ô Limão. Ô limão.
Sem poder deixar seus postos, os sentinelas também usam os rádios para pedir comida. “Ô gente, na melhor hora que tiver como mandar o almoço aqui na RDA (boca de fumo) aqui. Copiou Praça 7? Tô colado na tela (vigilante)”, disse um dos monitores.
Em outra transmissão, funcionários de um supermercado usam rádios para passar orientações sobre o trabalho e são intimidados a deixar o canal de rádio que está sendo utilizado, como se fosse uma frequência já dominada pelos criminosos. “Essa frequência aqui é de bandido, doidão!”, avisou um dos traficantes, que não se identificou, obrigando os funcionários do supermercado a mudar a faixa de comunicação.
O trânsito também sofre intensa vigilância e os repetidos informes, em pontos distintos, mostram que a rede de comunicação consegue acompanhar o movimento de veículos que podem ser de forças de segurança pública ou de gangues rivais. Na manhã do dia 11, a central na Praça do Cardoso desconfiou de dois carros que desciam na contramão da avenida. “Quem subiu a contramão aí, zé?”, perguntou o operador. “Só desceu a contramão lá. Tá, no mais tá suave, não passa nada para ninguém”, garantiu o sentinela da praça.
Em seguida, a central repassa ao próximo posto de vigilância que dois carros descem na contramão, mas que não são perigosos. Entre as forças policiais, a Guarda Municipal é a única que não desperta o temor dos traficantes. Mesmo quando são avistados, os guardas são tratados como algo que não traz risco e por isso as atividades ilícitas não cessam. “Quem sobe o viaduto aí, tá suave (sem perigos). É um motoqueiro guarda municipal, copiou Praça 7 (Central da Boca)?”.
Traficantes monitoram a chegada da polícia no Aglomerado da Serra
Um policial civil que trabalhou na Área Integrada de Segurança Pública (Aisp) instalada na Serra informou que as autoridades têm conhecimento do sistema de radiocomunicação dos traficantes, mas que não dispõem de material para monitoramento sistemático da atividade. “É muito difícil a gente fazer um acompanhamento.
PM NÃO ACOMPANHA O comandante do policiamento da capital, coronel Cícero Leonardo da Cunha, admite que as comunicações por rádio são prática em algumas “áreas de risco” onde o tráfico atua, mas afirma que com um trabalho de inteligência a corporação tem conseguido fazer apreensões e prisões. “Sabemos que isso (o monitoramento da PM por rádio) existe, mas isso não é impeditivo do nosso trabalho, não impede a atuação preventiva da polícia nem o policiamento comunitário e nossa boa relação com a comunidade.” O comandante confirma que não são feitos acompanhamentos das conversas dos traficantes pelos rádios.
O que diz a lei
Pela Lei Federal 9.472, de 1997, os rádios usados pelos criminosos não estão sujeitos a licença de transmissão, mas segundo a Agência Nacional de telecomunicações (Anatel), os aparelhos são passíveis de apreensão por não terem certificado de controle da agência. O rastreamento das ações policiais e a organização de ações criminosas com o uso de rádios e de outras formas de comunicação são provas importantes na fundamentação de processos de associação criminosa ou formação de quadrilha, previstos na Lei 12.850, de 2013, que diz ser crime associarem-se três ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes. A pena é de um a três anos, de reclusão, e pode ser ampliada para quatro anos e seis meses se a associação for armada ou se houver participação de criança ou adolescente.
Traficantes acompanham movimentação no Aglomerado da Serra
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