Montes Claros – Para um paciente conseguir uma cirurgia cardíaca eletiva pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é preciso passar pelo atendimento na atenção básica, fazer o encaminhamento e esperar, em uma fila, de dois a três meses. Mesmo com tanta dificuldade, as cirurgias cardíacas pelo SUS viraram alvo de um esquema de desvios de recursos públicos, com envolvimento de médicos e empresas fornecedoras de próteses, que foi desarticulado pela Operação Desiderato, deflagrada ontem pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF). Sete pessoas foram presas por suspeita de participação nas fraudes, incluindo três médicos em Montes Claros, no Norte de Minas, um dos principais núcleos do esquema.
Além das prisões no Norte de Minas, uma pessoa foi presa em Belo Horizonte e um empresário suspeito foi detido no Rio de Janeiro. Um empresário de São Paulo, também investigado, teve prisão temporária decretada, mas não foi preso porque está fora do país. Ao todo foram cumpridas 72 medidas judiciais em Minas, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina, incluindo sete conduções coercitivas e 21 mandados de busca e apreensão. Em Florianópolis, houve a condução coercitiva de um office-boy que já trabalhou para o grupo.
Segundo as investigações iniciadas em julho de 2014, as fraudes eram patrocinadas por duas empresas fornecedoras de materiais médicos e hospitalares que pagavam propinas aos médicos para que eles simulassem a realização de cirurgia para colocação de stent (tubo que desobstrui artérias do coração), comercializado pelas referidas distribuidoras. Na prática, no entanto, não havia necessidade do procedimento. As investigações avançaram depois que um dos médicos envolvidos aceitou fazer um acordo de delação premiada e detalhou a fraude.
O Estado de Minas apurou que uma das empresas investigadas tem filial no Bairro Prado, em Belo Horizonte, com matriz no Rio de Janeiro. Outra empresa, sediada em São Paulo (com filiais no Rio de Janeiro, Ribeirão Preto/SP e Porto Alegre), tem como lema “Excellency for life” (excelência para a vida) e divulga em seu site que “está no negócio de manter vidas, sublimar vidas, salvar vidas (...). Também publicou texto em que destaca: “Após mais de 200 mil dispositivos implantados, continuamos a reforçar esse compromisso através da parceria com a classe médica do profissionalismo de nossos colaboradores”.
Conforme as investigações, as empresas pagavam aos médicos propinas que variavam de R$ 500 a R$ 1 mil por prótese, sendo o valor mais baixo pelo stent tradicional e o valor maior pelo stent farmacológico. Por outro lado, as empresas cobravam do SUS valores bem mais altos: R$ 2 mil pelo stent convencional e R$ 11 mil pela prótese farmacológica. O grupo de médicos envolvidos chegou a receber R$ 110 mil por mês e os valores pagos somente por uma das empresas investigadas chegou a R$ 1,4 milhão em menos de três anos.
Angioplastia só era falsa para o SUS
As investigações da Polícia Federal descobriram que uma empresa de fachada firmou contrato de “prestação de serviços” com uma das distribuidoras de produtos hospitalares. Mas, na verdade, o contrato teria sido assinado apenas para lavagem de dinheiro, resultante das fraudes, com a simulação do pagamento de serviços que não eram prestados na prática.
Segundo Marcelo Eduardo Freitas, chefe da delegacia da PF em Montes Claros, as próteses eram compradas sem que houvesse necessidade da angioplastia. Dessa forma, os médicos envolvidos criavam um estoque paralelo de stents – que, mesmo já pagos com recursos do SUS, eram usados em pacientes particulares, que, obviamente, pagavam novamente aos médicos. Dessa forma, os profissionais recebiam duas vezes pela prótese (do SUS e particular).
Marcelo Freitas informou que, para efetivar a fraude, os médicos ligados ao esquema elaboravam dois laudos diferentes: um era encaminhado ao paciente, não fazendo referência à necessidade do stent. Outro laudo era emitido para a coordenação do Sistema Único de Saúde, relatando a necessidade da prótese. “Muitas vezes, a fraude era praticada sem o conhecimento da pessoa atendida”, disse Freitas.
As investigações apontaram que o grupo atuava na Santa Casa e no Hospital Dilson Godinho, instituições filantrópicas de Montes Claros, que foram alvo de mandados de busca ontem. Mas, segundo o MPF e a PF, os hospitais não tiveram envolvimento nos crimes e deram apoio às investigações.
A Polícia Federal não divulgou os nomes dos presos na Operação Desiderato, mas, conforme o EM apurou, foram presos provisoriamente em Montes Claros os médicos Zandonai M., Vagner V.F. e Gerson M., além de Eleuza S.A., secretária do grupo. Também foi preso o representante comercial Edilson F. F., que trabalha para uma das empresas envolvidas. Os nomes dos empresários presos em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro não foram divulgados. A reportagem tentou contato com os advogados dos suspeitos, mas não obteve sucesso.