Os problemas que colocam a saúde pública em estado crítico em Minas aparecem em lugares diferentes, que juntos contribuem para uma situação próxima do caos. A reportagem do Estado de Minas ouviu de médicos e pacientes queixas de falta de profissionais, infraestrutura precária para atendimento, burocracia da gestão pública no momento de resolver as pendências e escassez de insumos básicos para garantir consultas e casos de urgência. Faltam desde roupas para cirurgias a medicamentos; aparelhos importantes estragam e ficam sem conserto; nas unidades que deveriam primar pela limpeza e assepsia há obras se arrastando, paredes sem reboco e cadeiras rasgadas. A situação chega ao cúmulo de escorpiões invadindo salas de atendimento no maior hospital infantil do estado.
Paredes estão danificadas, portas estão velhas e a tão sonhada obra de expansão e requalificação do hospital está parada, contribuindo para piorar o quadro de calor e abafamento. A situação é tão crítica que o ambiente é hábitat de escorpiões, encontrados com frequência inclusive onde mães e filhos esperam pela consulta. Gestores e médicos já encaminharam repetidas vezes memorandos à administração da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig) pedindo providências, mas as soluções são apenas paliativas. “Há mais de 10 anos um novo CGP é prometido e essa obra já se arrasta há três anos. Durante muito tempo a gente tinha que andar uns 100 metros para conseguir beber água”, conta uma médica que trabalha no hospital e pediu para não ser identificada.
Segundo integrantes do corpo clínico, há 10 anos um plantão no hospital – que se tornou famoso pela superlotação, especialmente durante o inverno – chegava a ter 10 pediatras para dar conta da demanda. Hoje, há dias com apenas um médico. “As condições de trabalho e o salário baixo desencorajam os jovens pediatras a seguir a carreira aqui”, afirma a profissional. Ela lembra ainda que essa situação de poucos médicos sobrecarrega consideravelmente os demais. “Já dei um plantão sem almoçar e bebendo pouquíssima água, e os gestores só se preocupam com a produtividade”, afirma.
Um segundo médico diz que a pressão também vem do lado dos pacientes, que cobram o direito de serem atendidos. “Chegou um paciente com apendicite e nós não temos o bloco cirúrgico. Temos o cirurgião, mas não temos onde operar. Aí temos que transferir e isso gera um estresse muito grande. Na hora em que o menino está passando mal, se você está atendendo o problema é seu. O pai não quer saber quem pode ajudar. Muitos ficam em cima de você e dizem que os filhos estão morrendo por culpa sua”, afirma.
PROMESSA E OBRAS
A Fhemig informa quevai elaborar um plano diretor de obras para readequação das áreas assistenciais e administrativas do hospital, que vai resolver todos os problemas estruturais, incluindo a falta de ventilação nas salas. A fundação diz ainda que está discutindo com uma empresa especializada em controle de pragas um método para tentar controlar os escorpiões, antes das soluções estruturais. Sobre a falta de pediatras, a instituição reconhece um déficit de 50 profissionais, mas argumenta que o problema é generalizado no Brasil. Para amenizá-lo, as escalas estão sendo readequadas, com manutenção de valores diferenciados para plantões estratégicos desde setembro de 2014. Além disso, 14 novas vagas foram abertas para contratação via Prefeitura de Belo Horizonte e outras 30 estão disponíveis via contrato administrativo com a Fhemig.
A fundação conta hoje com 28 médicos residentes em pediatria no Hospital Infantil João Paulo II e a expectativa, com abertura de novas vagas, é chegar a 72 profissionais em 2018. Mesmo com o déficit, a Fhemig lembra que o hospital tem mais de 120 leitos de internação e CTI, registrando mais de 5 mil internações por ano e fechando 2014 com 23 mil consultas especializadas em sua unidade de doenças complexas.
A Secretaria Municipal de Saúde da capital também se manifestou sobre as aparições constantes de escorpiões no Hospital João Paulo II, dizendo que não há registro de ninguém picado e que a região onde fica o hospital é endêmica para a espécie. Por isso, é feito um controle permanente do local pela equipe de Zoonoses da Regional Centro-Sul. A pasta também apontou a necessidade de reforma do primeiro andar do prédio para conter a entrada de escorpiões.
SUS tem menos verba que planos
Mesmo com um salto de 49% no orçamento da Saúde no país entre 2010 e 2014, quando os recursos para ações e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) passaram de R$ 62 bilhões para R$ 92 bilhões, ainda é discrepante o gasto com pacientes entre a rede pública e a particular. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que a receita dispensada com cerca de 50,8 milhões de pessoas que têm planos de saúde foi de R$ 127,3 bilhões no ano passado, R$ 35,3 bilhões a mais do que a rede pública, que atende aos 150 milhões de brasileiros sem cobertura particular. É maior também que os R$ 98,4 bilhões previstos para 2015. A defasagem nos investimentos, segundo especialistas, é a origem de todos os problemas atualmente enfrentados nas unidades de saúde de Minas e vistos de forma crônica nos serviços de urgência e emergência, dos de média e alta complexidade.
Um dos médicos ouvidos pelo EM relata que na unidade do Hospital São Francisco do Bairro Santa Lúcia, Centro-Sul de BH, que também atende pelo SUS, os problemas acompanham a lógica dos hospitais públicos e unidades das prefeituras. “Já tivemos um caso de cirurgia marcada para as 7h da manhã, mas não havia o capote cirúrgico, que é a roupa que o médico usa para fazer o procedimento. Nesse caso tivemos que esperar até meio-dia, quando chegaram roupas da lavanderia”, conta o profissional. Ele lembra também das dificuldades envolvendo o setor de anestesia, e critica a falta de evolução dos medicamentos fornecidos pelo SUS. “Atualmente, há opções de anestesia de melhor qualidade. Porém, o SUS disponibiliza um medicamento que é de qualidade inferior. Com isso, o pós-operatório é mais prolongado, com uma hospitalização maior”, afirma o médico.
DENÚNCIAS O resultado de tantos problemas ecoa em forma de denúncias no Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sindmed-MG). O diretor de comunicação da entidade, André Christiano dos Santos, afirma que as reclamações são frequentes e sempre relacionadas a más condições de trabalho, baixos salários e falta de infraestrutura. Nos setores de urgência e emergência, ele diz que o problema é ainda mais grave, especialmente na pediatria. A falta de medicamentos também chega em forma de denúncias. “Recentemente, recebemos uma queixa de uma médica de UPA que tinha no consultório um caso de fasciíte necrosante, provocada por bactéria que causa necrose em tecidos, mas não havia na unidade nenhum dos três esquemas terapêuticos para tratamento”, afirmou o sindicalista, lembrando que a falta de tratamento agrava o risco de morte nos atendimentos de maior complexidade.
Sobre os problemas relatados por integrante do corpo clínico do Hospital São Francisco, a Fundação Hospitalar São Francisco de Assis, entidade filantrópica mantenedora, diz que atende 100% pelo SUS, o que significa depender dos repasses do município, do estado e da União. Sobre os medicamentos da anestesia, a fundação sustenta que a medicação usada tem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e é usada sob prescrição médica, garantindo a segurança dos pacientes. As alas de anestesia passam por reposição constante de equipamentos e contam com aparelhos reservas para emergências. A instituição destaca que, mesmo com as dificuldades financeiras de uma unidade que é 100% SUS, o hospital é referência no setor ortopédico.