“São 21h36. Eu e o fotógrafo Alexandre Guzanshe estamos acompanhando o Trabalho de São João, um dos mais importantes da doutrina do santo-daime, iniciado às 18h de um sábado, 20 de junho, na Fraternidade Kayman, no Bairro Ipiranga, Região Nordeste de BH. A data é reservada exclusivamente a rituais ligados ao chá. Começo a notar os efeitos da ayahuasca no meu organismo após beber a segunda dose. Ia guardar o microfone – usado para captar o áudio da cerimônia – quando percebo que minha mão está 'mole'. Pego o bloco de anotações para escrever as sensações, pois tenho receio de não conseguir me lembrar de nada. Fico um tempo paralisado, tentando recordar a grafia da palavra microfone.
No trabalho, como é chamada a cerimônia do santo-daime, homens ficam de um lado da igreja e mulheres, do outro. Ao centro, observo uma mesa com a Cruz de Caravaca, o Cruzeiro.
O gosto é bem amargo e a coloração, marrom-escuro. O aspecto é denso. Muitos saem da fila fazendo careta. Como já sabia disso, levei balas de hortelã no bolso, que chupei imediatamente após tomar o chá. Ao escrever este texto, cinco dias depois da experiência, volto a fazer careta só de recordar o sabor.
O bailado começa. Durante a cerimônia seguem o hinário 'O Cruzeiro', do Mestre Irineu, fundador da religião. São 130 hinos que todos cantam enquanto dançam, em um compasso repetitivo – dois para esquerda; dois para a direita. Alguns tocam um chocalho e em parte do hinário músicos com violão, baixo, guitarra e zabumba fazem o acompanhamento, posicionados no centro da roda.
Logo após servirem a segunda dose, eu olho para o Guzanshe. Pergunto se ele está bem.
PURIFICAÇÃO Canso de bailar e fico sentado nas cadeiras dispostas no fundo do salão. Os fiéis mais fervorosos não gostam da atitude. Entendem que sair da roda pode quebrar a corrente de energia. Já são mais de 22h e, ao ouvir o barulho das pessoas vomitando no jardim, do lado de fora do salão, faço o mesmo. No léxico daimista, vomitar não é passar mal. Faz parte do processo de limpeza.
A profusão de cores e luzes do salão, as bandeirinhas no teto, os altares multicoloridos, a música e o movimento do bailado me deixam atordoado.
Saio do salão e me deito no banco de cimento, embaixo de uma mangueira. Ao olhar o tronco da árvore, me vem a imagem de que aquilo é a pata de um dinossauro. Meu pensamento vai longe, em uma perseguição de dinossauros ao estilo de Steven Spielberg. Consigo desviar o olhar da árvore e, ao encarar o chão de cimento pintado, me recordo da casa de uma tia, no interior, local presente nos bons momentos da infância em que sempre me senti muito confortável. Lá, o piso era semelhante.
O criador do LSD, Albert Hofmann, escreveu no livro LSD – minha criança problema que viu na droga uma possibilidade de recuperar o encantamento que vivenciou na infância. 'Foram experiências que moldaram os principais esboços de minha visão do mundo e me convenceram da existência de uma realidade milagrosa, poderosa, insondável, que estava oculta da visão cotidiana', relata, na introdução da obra. Refletindo sobre a 'miração' – como os daimistas preferem chamar as alucinações – de um local da minha infância que sempre me agradou, faço uma relação entre as duas substâncias psicoativas: a ayahuasca e o LSD.
Um homem fardado, com cabelo estilo black power, responsável por fiscalizar o comportamento e acudir as pessoas que estão vomitando, vem conversar comigo. Interrompe minhas mirações. Fala da importância de ficar dentro do salão, para sentir a energia. Conta em forma de parábolas histórias de superação e força. Eu retorno ao salão, mas sigo atarantado com as luzes e cores.
MAIS UMA DOSE Por volta de meia-noite, um intervalo. Durante a pausa – uma hora –, fico sentado próximo a uma fogueira e aos poucos as mirações vão cessando. No retorno, é servida a terceira dose do Daime. Mas não me arrisco a beber mais. Pierry (Pai João de Aruanda) conclama que todos tomem pelo menos um pouco, pois, segundo ele, é importante para manter a força.
Sigo no processo de 'limpeza', mas agora por outra via, e no vaso sanitário. Ao voltar ao salão, sinto um alívio grande e passo bom período da segunda parte da cerimônia dormindo sentado. O trabalho termina às 5h30. Já em casa, acordo por volta de 11h e vivencio uma sensação de paz e tranquilidade, totalmente distinta de uma ressaca.
Após a experiência, eu sigo ateu, mas com um profundo respeito – um pouco de inveja, confesso – pelo sentimento de fé das pessoas. O ambiente na Fraternidade Kayman é de amizade e respeito, todos se tratam bem e os discursos são sempre de amor e tolerância. 'Nós somos todos iguais. Nós somos todos filhos de um único Deus. Não tem como pensar diferente', ensina Pierry.”
‘O gosto é bem amargo e a coloração, marrom-escuro. O aspecto é denso. Muitos saem da fila fazendo careta. Como já sabia disso, levei balas de hortelã no bolso, que chupei imediatamente após tomar o chá’
Química da fé
Os fiéis ao santo-daime repudiam aqueles que classificam a ayahuasca como uma droga ou alucinógeno. No livro Mergulho na luz – Psicografia em expansão de consciência com o Santo Daime (Infinitum Editora), o autor, Júlio da Mata, atribui a orientação ao espírito Bom Moço e explica: “A ayahuasca é uma substância psicoativa que expande a percepção humana, produzindo um estado alterado de consciência. As experiências com ela são de caráter místico, pessoal e real para o visionário. Pela definição técnica de alucinógeno, a ayahuasca não poderia ser considerada uma substância alucinógena, por não produzir os efeitos adversos descritos na definição de alucinógeno”.
Resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, de 2006, permitiu o uso do chá para fins religiosos. Em 2010, a resolução foi revista, esclarecendo questões sobre a proibição da comercialização da bebida. O princípio ativo da beberagem é a dimetiltriptamina (DMT) presente na folha rainha (Psychotria viridis), uma dos ingredientes do daime.
O farmacologista Rodrigo Guabiraba explica que o DMT é um análogo da serotonina, neurotransmissor ligado às sensações de bem-estar e recompensa nos mamíferos. “O DMT é eliminado do corpo pela monoamina oxidase (MAO), substância presente em vários tecidos do corpo, e, claro, no sistema nervoso central”, explica o farmacologista, pós-doutor em imunofarmacologia pela Universidade de Glasgow, na Escócia, e pesquisador do Institut National de la Recherche Agronomique (Inra), na França.
Guabiraba detalha, porém, que o cipó jagube (Banisteriopsis caapi), que também entra na receita do chá, tem em sua composição alcaloides que inibem a MAO e favorecem a atividade do DMT no organismo. Foi o químico e psiquiatra húngaro Stphen Szára, na década de 1950, que começou a estudar o DMT e suas propriedades psicoativas e alucinogênicas, pois trabalhava na mesma época com o LSD, destaca Guabiraba.
EFEITOS COLATERAIS O farmacologista aponta que estudos recentes não mostram grandes efeitos de dependência ligados ao DMT. “Pode ser observada depressão pós-uso, como no LSD. Mas o abuso, sem dúvida, pode levar à depressão permanente e distúrbios diversos em indivíduos suscetíveis, como esquizofrênicos, mas não necessariamente dependência”, detalha Guabiraba. “O problema do daime, além do possível abuso, é o uso sem vigilância e fora do ritual”, complementa.
Em vez de alucinógeno, os adeptos do santo-daime preferem a expressão enteógeno – substância que leva à inspiração ou a alguma revelação. “O daime contém compostos que causam alucinações, ligadas ou não ao bem-estar, em que a intensidade da experiência pode estar ligada à fisiologia do indivíduo e à forma e à composição do chá. Porém, o ritual tem um papel fundamental, pois predispõe o indivíduo a ter sensações que, provavelmente, não seriam sentidas se a bebida fosse tomada em campo neutro – por isso, o conceito de enteógeno”, afirma Guabiraba.