O levantamento mostra ainda que os meninos são os mais são agredidos (70,9%). As meninas representam 29% dos atendimentos.
Foram quatro anos de estudos aprofundados em violência e análise institucional, dos quais Fernanda passou seis meses mergulhada em 1,7 mil prontuários do HPS. Ela pesquisou histórico de vítimas com idade até 18 anos. Paralelamente, Fernanda entrevistou médicos, psicólogos, assistentes sociais e parentes de menores vítimas de violência internados no Centro de Tratamento Intensivo (CTI). “O hospital me solicitou uma investigação, pois muitos casos deram entrada como acidentes domésticos. Havia uma violência oculta”, disse a pesquisadora. “Pude confirmar nesse estudo que a violência é realmente uma questão de saúde pública. Não tem impacto somente na vida da criança e do adolescente, mas também tem um custo social, econômico e cultural na sociedade”, reforça.
Para a pesquisadora, a agressão física contra menores ainda é vista como uma fórmula de educação, sendo diversas vezes naturalizada e banalizada. “Os pais se acham no direito de bater nos filhos, embora existam leis proibindo” comenta. Quando esse espaço privado da violência se torna público, segundo ela, é preciso uma intervenção por parte das autoridades e da sociedade. “Parentes e vizinhos das vítimas têm a obrigação de relatar às autoridades pelo disque-denúncia 100. A ligação é sigilosa”, orienta.
Dos 1,7 mil prontuários analisados, 10,2% foram por agressão física. Os acidentes domésticos correspondem a 14,3%, mas muitos dos relatos de pais e responsáveis são para encobrir agressões físicas.
O HPS recebe vítimas de todo estado, mas a maioria (43%) é de BH. Outras 32,6% são da Grande BH, com destaque para Ribeirão das Neves (5,9%), Contagem (5%), Sabará e Santa Luzia (4,2%). Os bairros da capital com maiores incidências de violência doméstica contra menores são o Taquaril, Independência e Vera Cruz. “É válido ressaltar que a violência doméstica não tem classe social.
Psicológico
As tentativas de autoextermínio são muito presentes entre os jovens, observou a pesquisadora, muitos com indicadores de depressão. “São muitas meninas que tomam remédios, muitas vezes por sofrerem violência psicológica ou sexual dentro de casa”, alerta Fernanda. Há casos de meninas de 8 anos que tentaram se matar, segundo ela. “A marca física é superada de uma certa forma, mas as consequências de ordem psicológica e social perpetuam por muitos anos na vida de uma pessoa”, alerta.
Um caso de violência contra recém-nascidos, muito comum e que muitas vezes não deixa marcas, é a Síndrome do Bebê Sacudido. Em momentos de descontrole, adultos, principalmente os pais, agitam fortemente a criança e isso pode causar danos ao cérebro do bebê, com risco, inclusive, de ficar em estado vegetativo, segundo a pesquisadora.
Outro problema detectado no HPS é um transtorno mental conhecido por Síndrome de Münchausen por procuração, que é uma modalidade de abuso infantil em que um dos pais ou responsável, em geral a mãe, falsificam sintomas ou sinais na criança para considerá-la doente. “Às vezes, eles dão remédios pesados à criança e causam sequelas que podem levar à morte”, relata. Uma mãe levou o filho ao hospital e foi descoberto que ela já havia causado a morte de um outro por causa da Síndrome de Münchausen, conta a pesquisadora. Em outra ocorrência, um bebê de sete meses deu entrada no HPS com queimaduras profundas no pulso, causadas por óleo quente e também traumatismo craniano. A família entrou em contradição na hora de relatar o que havia acontecido e os médicos concluíram que a criança havia sido agredida.
Mães cometem maior parte das agressões
As mães aparecem como as principais responsáveis pela violação dos direitos das crianças atendidas no HPS, segundo Fernanda Martins. Em muitos casos, elas têm problemas de alcoolismo ou estão desempregadas. “Há uma vinculação patológica. São famílias que trazem um histórico de violência intergeracional”, reforça a assistente social, que pesquisou casos de violência contra crianças e adolescentes registrados no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII (HPS), em Belo Horizonte.
Os anos de vigência do ECA, segundo Fernanda, não foram suficientes para romper com a violência que está enraizada culturalmente na sociedade. Até hoje, afirma , há uma violência aceita, naturalizada e banalizada. “A cada 10 minutos, uma criança é vítima de violência no Brasil. O que me surpreende muito é que esse número está crescendo”, lamenta a pesquisadora, ao citar o levantamento das denúncias de maus tratos contra crianças no ano passado, divulgado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Governo Federal. Mais de 150 mil denúncias foram feitas em 2014 ao Disque 100.
A conclusão da pesquisadora é que as crianças precisam ter um lugar central nas políticas públicas, o que significa, segundo ela, acesso à educação formal, principalmente à infantil. Ela também defende uma política de fortalecimento de vínculos familiares e cita como exemplo os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), que trabalham com a prevenção.
Passados 25 anos do ECA, suas regras não saíram totalmente do papel, segundo Fernanda. Ela lembra que nesse período surgiram duas leis importantes, a da palmada (Lei 13.010/2014), que diz que qualquer agressão contra a criança e adolescente é crime e a Lei da Adoção (12.012/2010). “A adoção é a última alternativa. A criança tem o direito de conviver com a sua família biológica. Em muitos casos de violência, a criança é levada à institucionalização. São retiradas de seus pais e encaminhadas ao acolhimento, quando deveriam fazer um trabalho social com as famílias para desenvolvimento de vínculos e afetos”, defende a especialista..