Gonzaga – Aos 17 anos, Robert Oliveira da Silva luta para aprender inglês pela instável internet no sítio onde vive com a família, na zona rural da pequena e bem cuidada Gonzaga, distante mais de 300 quilômetros de Belo Horizonte. Sonha em correr mundo: está decidido a ir para os Estados Unidos logo que se formar. Seriam apenas os projetos de mais um entre milhares de jovens do Vale do Rio Doce que planejam ganhar a vida “no estrangeiro”, não fosse ele sobrinho do mais ilustre filho da terra a perder a vida no exterior. Jean Charles de Menezes era apenas 10 anos mais velho quando recebeu oito tiros da polícia britânica, ao ser confundido com um terrorista na estação de metrô de Stockwell, no Sul de Londres, em um crime oficial até hoje sem condenados. Uma década depois, os planos do neto fazem os avós, pais de Jean Charles, engolirem em seco. Lembram-se das tentativas infrutíferas de demover o próprio filho da ideia de deixar o Brasil. Sabem que é uma batalha perdida. Assim como não gerou punições, a tragédia do brasileiro que virou até filme não desanimou moradores do município de 5,9 mil habitantes de buscarem a sorte na Europa ou na América.
Mas Jean Charles não chegou a ter tempo de mandar para os pais o dinheiro com que sonhava tornar menos dura a vida da família no interior de Minas. Hoje, além das fotos que procura esconder, para fugir do sofrimento, Maria Otoni de Menezes, aos 70 anos, guarda do filho apenas o televisor que ele, já vivendo na Inglaterra, comprou por telefone em Gonzaga e mandou entregar no sítio. Dez anos se passaram. Para ela, parece que foi ontem. Quando bate a saudade, é como se uma cicatriz que nunca fecha voltasse a sangrar no coração de mãe. “Quando me lembro dele, é como se tivesse acontecido hoje. É passado, mas não passa nunca”, descreve a mãe do eletricista alvejado e morto pela polícia londrina em 22 de julho de 2005.
Maria vive com o marido, Matozinho Otoni da Silva, de 76, o filho mais velho, Giovani Menezes, e três netos, entre eles Robert, em uma pequena propriedade rural de Gonzaga, no Vale do Rio Doce, onde Jean nasceu e foi criado. Para aliviar um pouco a angústia, “que dói na alma”, procura se lembrar só dos momentos em que teve o caçula por perto. “Não era menino de fazer tristeza. Sempre alegrava a gente. E é essa a melhor recordação que eu tenho: o sorriso dele”, conta a mãe, emocionada, lembrando-se de um presente que ganhou do filho quando ele tinha só 14 anos. “Chegou caladinho, sem eu perceber, e me entregou uma garrafa térmica. Eu trabalhava muito e nem lembrava que era o meu aniversário.
O sitiante Matozinho da Silva também guarda boas lembranças do filho, que com 4 anos já queria ser eletricista. “Um dia, ele construiu uma hidrelétrica de brinquedo, fincou uns pedaços de pau no chão e passou uns fios nos 'postes'. Depois, me pediu e eu fui lá na cidade comprar umas lâmpadas de lanterna. Quando elas acenderam, saiu pulando de alegria pelo quintal”, lembra o pai, com uma ponta de sorriso e o olhar perdido na mata que cerca a casa, como se mergulhado no passado.
Matozinho conta que ficou sabendo da morte do filho dois dias depois. Um sobrinho, que também morava em Londres na época, telefonou para a Prefeitura de Gonzaga. A má notícia ainda percorreu 14 quilômetros de estrada de terra para chegar. “Era o meu caçula, e eu só tinha dois. Ainda hoje me lembro dele todos os dias.
Jean saiu de casa pela primeira vez para morar em São Paulo, conta o pai. Depois, ajudado por colegas de trabalho, foi tentar uma vida melhor em Londres. “Ele sempre me ajudava aqui na fazenda e começou a trabalhar de eletricista. Consertava rádio, televisão, tudo o que via com defeito. Um dia, falou para mim: 'Papai, vou para Londres trabalhar e ganhar dinheiro, para ajudar o senhor aqui na roça'. A vida aqui sempre foi difícil. Continua sendo”, recorda o pai, que vive na terra onde cria poucas cabeças de gado e um cavalo “para viajar de vez em quando”.
A rotina na pequena propriedade rural voltou a ser o que era antes da morte de Jean Charles. Mas a tristeza fez a vida muito pior, diz o pai, que acorda todos os dias às 6h30 para cuidar das galinhas e ordenhar o pequeno rebanho de vacas. O serviço pouco, agora que os bezerros estão desmamados e não sobra leite nem para fazer queijo, tem sido mau companheiro. “Preciso ir ocupando a vida para tentar fugir da lembrança”, confidencia.
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