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Estado de Minas

Trabalhando como frentista, haitiano formado em pedagogia sonha em voltar a ensinar

Em dois anos de Brasil, haitiano fluente em três línguas, que domina o português, só conseguiu trabalhos que não exigem tanta qualificação e foi até vítima de racismo


postado em 23/07/2015 06:00 / atualizado em 23/07/2015 07:35

"Meu objetivo é trabalhar como professor, em qualquer lugar. Quero mesmo dar aulas de inglês ou francês" - Cadet Fritznel, haitiano, que agradece pela oportunidade que conseguiu no posto, mas não desiste de retornar às salas de aula (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)

Cadet Fritznel, de 34 anos, é pedagogo. Durante mais de uma década, foi professor e tradutor de inglês. Também domina as línguas francesa, crioula, espanhola e portuguesa – embora nesta última ainda tropece. O currículo impressiona muita gente, mas tem pouca valia. Hoje, ele ganha cerca de R$ 1 mil trabalhando como frentista em um posto, na Zona Oeste de Belo Horizonte. E agradece a oportunidade, pois até chegar a ela passou por maus bocados.

A dificuldade em encontrar emprego na área não tem relação com a crise econômica que atravessa o Brasil. O maior obstáculo, segundo ele, é o preconceito. Fritznel é haitiano e mora no Brasil desde setembro de 2013. Veio para BH fugindo do caos que se instalou em seu país depois do terremoto de 2010. Mas, em quase dois anos, só conseguiu ocupações que dispensavam a formação acadêmica. Nelas, enfrentou jornadas duras para sobreviver.

Em geral, empregadores estão dispostos a contratar mão de obra haitiana apenas para serviços braçais. Na luta diária pela sobrevivência, o professor diz que sofreu com racismo e assédio moral. “Muita gente no Brasil não vê com bons olhos os haitianos”, queixa-se. A despeito das muitas dificuldades, Fritznel acredita em dias melhores na capital mineira. Seu objetivo é voltar a trabalhar na área educacional.

Pai de quatro filhos, todos com menos de 11 anos, o tradutor conta que, quando chegou, não sobravam nem trocados para enviar para a família. Sua mulher não trabalha, e todos sobrevivem com o dinheiro enviado do Brasil.

O primeiro trabalho dele foi como descarregador de caminhões. O haitiano conta que sofria com a jornada longa e desgastante. Chegava, segundo ele, às 11h. Muitas vezes, ficava até as 3h da manhã. Tanto esforço por R$ 50 por dia. Se ficasse doente e não pudesse comparecer, tinha o dia cortado. “Foi o momento mais difícil aqui em Belo Horizonte. O trabalho me esgotava física e mentalmente. Era quase um trabalho escravo. Para piorar, não tinha tempo de descanso. Não conseguia dormir direito, porque no outro dia tinha que sair cedo para não chegar atrasado. Passei três meses lá”, relembra, com tristeza.

O desgosto com a situação humilhante quase fez o haitiano voltar ao país de origem. Mas o que faltava em dinheiro sobrou em perseverança. Fritznel é homem valente, de fibra. Frequentador da Igreja Assembleia de Deus, também se apega à religião. “O sofrimento foi muito grande. Tinha dia em que eu chegava em casa e ficava chorando o tempo todo. Pensava: ‘O que estou fazendo aqui, longe da minha família, dos meus amigos?’. Mas, depois, colocava a cabeça no lugar e pensava em procurar um emprego melhor”, afirma.

Uma nova oportunidade apareceu, em um hotel da região Centro-Sul da capital. Mais uma vez, porém, a experiência foi traumática. Antes de deixar o emprego, soube, por outros funcionários do hotel, que um dos hóspedes não queria ser atendido por um “funcionário de cor”, como teria dito a madame. A direção não confirmou o incidente. “Falar sobre isso me dói. Eu não escolhi nascer preto, você não escolheu nascer branco. A gente é igual. Mas muita gente não entende isso. Saí de lá muito triste. Não sabia que passaria por isso no Brasil”, conta o haitiano.

OPORTUNIDADE
Hoje, Fritznel agradece a oportunidade de trabalhar em um posto, “com pessoas boas”, como destaca, mas, claro, sonha mais alto. A educação está no horizonte do haitiano. Em frente ao local de trabalho, observa todos os dias o Cefet I, do Bairro Nova Suíça. Ao lado, está uma escola estadual. Ele sorri com a coincidência. E sonha com os livros, todos os dias. “Meu objetivo é trabalhar como professor, em qualquer lugar”, explica. “Depois de me estabilizar, trarei minha família. O Brasil tem problemas como qualquer outro país, mas é possível sonhar com uma vida melhor”, projeta Fritznel, que mora com a prima e outros quatro haitianos, no Bairro Morada Nova, limite entre Belo Horizonte e Contagem.

O clima na casa é familiar. Todos se ajudam para superar a saudade da terra natal e pagar as contas. Segundo Fritznel, quem fica sem emprego é desonerado. Por outro lado, aos desempregados cabe fazer o serviço da casa, enquanto não encontram nova ocupação.

Brasil surge como salvação pós-tragédia


O professor que já trabalhou de carregador e hoje é frentista seguiu o destino de mais de 39 mil haitianos – dado atualizado pela Polícia Federal em setembro de 2014 –, que desde o terremoto migraram para o Brasil. O tremor de 7 graus na escala Richter arruinou o país, provocando cerca de 250 mil mortes, centenas de milhares de feridos e desabrigados.

Em Minas, o recuo da construção civil passado o incremento das obras visando à Copa de 2014, não resultou em redução da população haitiana, estimada em cerca de 3 mil pessoas, que tinham como principal fonte de renda as ofertas do setor. O mesmo número foi apontado por pesquisa dos professores da PUC Minas Duval Fernandes e Maria da Consolação Gomes de Castro, realizada em 2013.

O professor aponta que a maioria dos imigrantes está nos municípios de Contagem, Ribeirão das Neves e Esmeraldas. “A localização se explica pela proximidade com a Ceasa, onde trabalham como carregadores de caminhão e faxineiros”, afirma Duval Fernandes. Ele diz que a construção civil, apesar do desaquecimento, ainda recruta haitianos, por serem profissionais dedicados. “O que falta a esses imigrantes é o compromisso dos governos de gerar condições que atendam a necessidades como acesso ao ensino. Quando recebem o visto de ajuda humanitária, eles têm os mesmos diretos dos cidadãos brasileiros”, destaca Fernandes. O professor estima que cerca de 35 mil haitianos aguardem julgamento do pedido de asilo.

A possibilidade de acolhimento é o que atrai a maioria. “O terremoto destruiu nosso país. Todo mundo tem um conhecido, um parente que morreu por causa dos tremores. Eu perdi um tio e uma prima. Depois disso, o Haiti entrou em uma grande crise. Muitos tentam fugir para outros países, mas tirar o visto é difícil. O Brasil abre essa possibilidade de visto de trabalho. Muita gente vende tudo para vir para cá ”, conta ele, que tem o visto de cinco anos.

Friznet escolheu com cuidado a cidade em que moraria: “Procurei um centro grande, com oportunidade de emprego, mas tentei fugir das cidades muito violentas”, diz ele, que chegou à capital mineira em 25 de setembro de 2013. Mas o percurso foi longo. Deixou sua cidade, Dessalines, para pegar um voo na capital Porto Príncipe. Foi para o Panamá, de onde decolou para São Paulo. Lá, encontrou um coiote que, segundo ele, trocou seus US$ 500 por uma passagem de ônibus para a capital mineira.

Em BH, Fritznel procura alugueis baratos, ao lado de outros haitianos. Em geral, eles tentam ao máximo acumular dinheiro para enviar aos familiares. “Ganho quase R$ 1 mil, mas sobra pouco, por causa das contas. Minha família recebem cerca de US$ 100”, conta.

Atrás do rosto cansado – a entrevista ocorreu após o expediente, que se estende das 7 às 19h – ele mantém a esperança de dias melhores. “Penso nos meus filhos. O mais novo dormia sobre minha barriga todo dia. É isso que me ajuda a prosseguir”, diz, emocionado, pensando no dia em que vai reencontrar a família. (Com Landercy Hemerson)


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