Um casarão sem número da Rua do Serro, no tradicional Bairro da Lagoinha, Região Noroeste de BH, preserva em sua fachada, em algarismos romanos, o ano da sua construção: MCMXXVII (1927). Ninguém mora no imóvel e, apesar de haver arame farpado nas janelas para evitar invasão, a porta lateral está aberta e dá acesso a um dos cômodos. Na região, várias outras casas e palacetes antigos, alguns com mais de um século, já foram derrubados, deram lugar a empreendimentos comerciais, como garagens de ônibus. Outros são o próprio retrato do descaso, abandonados e ameaçando desabar.
Ontem surgiu uma esperança de preservação desse patrimônio cultural que marcou o início da nova capital mineira. A Diretoria de Patrimônio Cultural (DIPC), da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), estabeleceu o perímetro de estudo para realizar a proteção do conjunto urbano dos bairros Lagoinha e Bonfim, que tiveram como base de ocupação os imigrantes italianos que ajudaram a erguer os primeiros alicerces da cidade. Entretanto, para muitos moradores, essa preocupação veio tarde demais. “Ainda dá para salvar um pouco das casas antigas. Se a prefeitura tivesse tomado essa iniciativa antes, muitos imóveis ainda estariam de pé”, lamenta o aposentado Edgar Teixeira, de 82 anos, que desde os 10 mora no Lagoinha.
Um dos imóveis mais suntuosos da região, a Casa da Loba, na Rua Itapecerica, 579, é o retrato do abandono. O palacete foi construído em 1920 e a sua fachada chamava a atenção pela estátua de uma loba amamentando os gêmeos Rômulo e Remo, símbolo de Roma. “Era uma casa maravilhosa”, conta a comerciante Rosângela Silva, de 60, mostrando uma fotografia antiga do lugar. “Antes de morrer, o antigo dono, seu Fernando, foi embora para o Rio de Janeiro e levou a estátua da loba junto”, conta. Para ela, a PBH decidiu tarde pela preservação. “A história arquitetônica da cidade poderia estar mais completa hoje”, reclama.
Para moradores como Eustáquio José de Castro, de 68, dos quais 30 morando na Rua do Serro, ainda resta a esperança de o lugar se tornar ponto turístico, assim como a Lapa, no Rio Janeiro. É o que também deseja Neliane Reis, de 39, funcionária de um bar e restaurante da Rua Além Paraíba com Jequery, que se orgulha de trabalhar num imóvel do início do século passado. “O tombamento vai trazer vida para a Lagoinha e mais clientes para o bar.”
PROPRIETÁRIOS NOTIFICADOS Entretanto, muitos moradores torcem o nariz quando falam em tombamento de imóveis. “Não quero. Reformei todo o telhado e se ela for preservada vai dificultar a venda”, reclama a professora aposentada Leda Garcia, de 79, herdeira de um casarão de mais de 100 anos, na Rua Além Paraíba. Entretanto, ela se gaba por proteger o imóvel. “O assoalho é todo original”, disse. A comerciante Cristiane Maia, de 51, também é contra o tombamento. “A Lagoinha já é atrasada e isso vai emperrar ainda mais o progresso”, afirma.
A equipe técnica da DIPC vai fazer o inventário de toda a área para definição dos imóveis a serem protegidos e das diretrizes de proteção, que serão encaminhados para análise e aprovação do mesmo Conselho de Patrimônio. Segundo a PBH, toda a área delimitada já vinha sendo estudada pela DIPC e qualquer intervenção nos imóveis deveria ser precedida da emissão da carta de grau de proteção, emitida pelo órgão. “Demolição, nova construção ou reforma nessa área devem ser autorizadas pela DIPC”, informou. Não há prazo definido para conclusão do inventário. Quando houver o tombamento, cada proprietário será notificado. Hoje, apenas seis imóveis são tombados na Lagoinha e no Bonfim.
Para a presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), Michele Arroyo, a definição do perímetro de proteção e o inventário da área e tombamento de mais casas é importante porque pressupõe participação da comunidade na formulação do inventário, o aprimoramento das diretrizes de proteção e, principalmente, o reconhecimento formal da Lagoinha como patrimônio cultural da cidade. “A Lagoinha é um pouco a Lapa do Rio e deve ser valorizada tanto com esse uso boêmio e cultural quanto com o residencial.”