O acidente que envolveu um carro com motor turbinado, em alta velocidade, causando a morte de um casal em Belo Horizonte, evidenciou mais que a violência no trânsito. Uma combinação de irregularidades constatadas por autoridades policiais nas horas seguintes à tragédia chama a atenção para um problema sério que envolve carros com motores transformados em Minas. De acordo com o Departamento Estadual de Trânsito (Detran), o veículo Gol (placa GQO 9823), fabricado em 1996 e licenciado em nome do motorista José Almério de Amorim Neto, de 35 anos, não passou pelos trâmites legais para mudança das características do motor, e não tinha autorização prevista no licenciamento para circular em via pública com potência alterada. Mais que isso, todos os carros que passam por esse tipo de alteração em qualquer oficina do estado e rodam pelas ruas também estão irregulares, já que não há em Minas estabelecimentos homologados pelo Denatran para alteração de potência de motores.
A informação é do chefe da Seção de Vistorias do Detran-MG, Flávio de Andrade, que explica o problema: “O turbo pode ser feito, desde que em oficina credenciada pelo Denatran e que atenda a todas as exigências para rodar em via pública”. Segundo ele, isso não significa que as oficinas que prestam esse serviço no estado estejam irregulares. “Mas os carros transformados nesses locais só podem rodar em espaços próprios para competições de velocidade, e devem sair das oficinas em veículos de reboque”, afirma.
Ainda de acordo com Flávio, os pedidos para alteração de veículos envolvem principalmente mudanças no sistema de suspensão, para rebaixamento, no sistema de iluminação, além do tipo de mudança contratada por José Almério em uma oficina da Avenida Américo Vespúcio, onde ele “testava” a nova potência do carro quando matou o casal Kátia Aisten de Assis, de 27 anos, e Paulo Guilherme Medeiros Meireles, de 29.
A informação sobre o teste foi dada justamente pelo condutor a policiais militares, minutos após o acidente, e foi confirmada em cartório durante depoimento à Polícia Civil, segundo informou a delegada do Detran Rosângela Sousa Pereira Tulher, responsável pela ocorrência. No boletim lavrado pela PM consta a informação de que havia cilindros no interior do veículo, que foram enviados para perícia. “O perito que esteve no local constatou que o Gol sofreu uma transformação e foi nitroglicerinado, ou seja, recebeu um sistema de explosão que o torna altamente potente”, afirma a delegada.
Segundo ela, o motorista chegou a desmentir o depoimento inicial, sobre a realização de testes no carro. “Depois de orientado, ele disse que estava em baixa velocidade, dirigindo em segunda marcha, e que o acelerador teria travado. Mas isso não muda em nada as declarações iniciais”, destacou a policial. Ele foi preso na hora do acidente e na noite de ontem seria transferido para um presídio da Grande BH. A delegada explica que foram vários os fatores que a levaram a enquadrar o motorista no crime de duplo homicídio com dolo eventual. “Além de o veículo não ter a alteração homologada, testemunhas disseram que José Almério trafegava em velocidade muito acima do limite permitido para a via. Também descobrimos que ele já havia passado duas vezes pela avenida e o próprio condutor admitiu estar testando o motor do carro, recém-alterado”, afirmou.
No momento do acidente, José Almério perdeu o controle da direção. O carro bateu no canteiro central, “decolou” e capotou sobre o Palio que vinha em sentido contrário, matando seus ocupantes. A policial contou ainda que a violência do acidente e o resultado trágico das duas mortes se somam para fechar a acusação. “Mesmo que o veículo fosse autorizado, o motorista jamais poderia usar uma via pública para fazer testes, colocando em risco a segurança e a vida das pessoas que pasam pelo local”, destacou. O administrador de empresas Pablo Dutra Abrances, de 29 anos, presenciou o acidente. “Ele deveria estar a mais de 150 km/h. Passou duas vezes. Foi e voltou, com um barulho ensurdecedor”, contou.
O advogado de José Almério, Hermes Vilchez Guerrero, informou ter feito um pedido na Justiça para que o cliente responda ao processo em liberdade. Sobre a informação de que o carro não estava regular e que ele estaria realizando testes de velocidade, o defensor se limitou a dizer que ainda não conversou sobre esse assunto com o cliente.
O carro de José Almério foi apreendido e levado para um pátio seguro do Detran no Bairro Engenho Nogueira, na Região da Pampulha. Segundo o Detran, apesar da falta de homologação para a mudança no motor, os documentos do carro estavam em dia, bem como a habilitação do motorista, que não tinha pontuação por multas em seu prontuário.
FALTA DE ESTRUTURA Coordenador da Câmara de Mecânica do Sindicato da Indústria de Reparação de Veículos e Acessórios do Estado de Minas Gerais (Sindirepa), Carlos Henrique de Morais afirma não conhecer nenhuma oficina autorizada ou especializada para fazer este tipo de serviço na capital. “Aqui em BH não conheço, pode ser que haja em São Paulo”, disse. E reconhece o perigo de acidentes com veículos com motores transformados. “Realmente existe risco de fazer a alteração de engenharia no motor, que deve ser feita por profissionais especializados e depois aprovada pelo Detran, para que o carro possa circular na rua”, afirmou.
O diretor técnico da Federação Mineira de Automobilismo (FMA), Luiz Fernando Esmeraldo, explica que veículos preparados para competição devem ser transportados em caminhões plataforma ou reboque próprios até o local. “É uma questão de segurança. E, mesmo no local de competição, o veículo passa por inspeção técnica com relação à preparação, para verificar se foram adotadas todas medidas de segurança”, afirmou.
De acordo com Esmeraldo, nas disputas de arrancadas há categoria em que carros de uso particular podem ser inscritos. Mas ele reforça que esses veículos alterados não podem rodar por vias públicas. “Quando se fala em preparação do carro, não é apenas aumentar a potência do motor. Há outras alterações necessárias, como nos freios e suspensão, que devem ser observadas. Para rodar em vias públicas, só como a homologação do Inmetro e Denatran”, acrescentou Luiz Fernando.