Até 1944, ano da descoberta da estreptomicina (primeiro medicamento contra a tuberculose), receber o diagnóstico de tísico equivalia a ser apresentado à própria morte. A possibilidade de cura demorou a chegar ao Brasil. “A tuberculose matava. Se vou morrer mesmo, então vou morrer longe. Não posso ficar em casa, porque posso contaminar minha família.” O relato comovente é de Anthenor de Braga Faria, que, naquela época, decidiu se isolar do contato com a mulher e os seis filhos, internando-se espontaneamente em um sanatório de Belo Horizonte, “onde se dizia que até a poeira curava”.
Antes de morrer de câncer, aos 95 anos, em 2006, o bancário aposentado prestou depoimento histórico ao Portal da Velhice, projeto de recuperação da história oral conduzido por pesquisadores da PUC de São Paulo. Anthenor e a mulher dele, Fernandina Caldas Farias, que também viria a falecer, aos 98 anos, há um ano e meio, contaram em detalhes a saga iniciada pela tuberculose, que interrompeu uma promoção no banco, determinou o afastamento das funções e provocou a sua retirada da família, do emprego e da terra natal, por cerca de dois anos.
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Como ele, de uma hora para a outra tuberculosos de todo o país desapareciam das próprias vidas, sem dar maiores avisos. Era vedado tocar no nome da doença contagiosa dentro de casa, sob o risco de ser execrado por vizinhos e parentes próximos.
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Anthenor seria submetido a uma cirurgia para a retirada de cinco costelas, abrindo caminho no peito para respirar. Devido à hemorragia, o médico parou na quarta costela. Era obrigado a deitar em cima do corte, para cicatrizar. Mas ficou curado. Em setembro de 1947, voltou de vez para Maceió.
SUSPIROS DE UM DOENTE
O diário do bancário aposentado Anthenor de Braga Faria, que se internou voluntariamente em um sanatório de Belo Horizonte na década de 1950
“Era o ano de 1945. Cheguei em Maceió tossindo, com mal-estar e dor de cabeça. Fui ao médico, que fez uns exames e me disse: “Você está com um problema sério no pulmão. É tuberculose”. Tinha sido promovido a contador de Outro Fino (MG) e não poderia assumir. Fui ao banco e disse que, no dia seguinte, não voltaria mais lá.
“Cheguei em casa e pensei: “Não posso ficar aqui porque posso contaminar minha mulher e meus filhos”. Se vou morrer mesmo, então vou morrer longe. Naquela época não havia medicamentos, a tuberculose matava. Eu precisava ser realista. Falei com o médico que iria me tratar em Belo Horizonte. Falavam que a poeira de Belo Horizonte curava”.
“Tirei licença médica, tomei o avião e fui embora. Internei-me no Hospital Hugo Werneck.
“De manhã, levantei, tomei café no quarto e fui até uma agência do Banco do Brasil levar os documentos para a internação. Chegando na agência bancária, disse que queria falar com o senhor Osvaldo e o rapaz respondeu: '- Não se preocupe, você vai se curar”. Essa criatura foi um anjo na minha vida, mas nesse dia começou minha odisséia. Ele me mostrou algumas pessoas ali no banco que ficaram doentes e se curaram”.
“O problema era que o hospital Hugo Werneck não estava mais atendendo funcionários do Banco do Brasil. Teria que me internar nos hospitais dos bancários, mas eles estavam sempre lotados. O Osvaldo chamou o médico do banco e contou a história para ele. Ele me olhou e disse: 'Você vomitou muito sangue?”. Você vai dizer a eles que eu fui chamado pelo Hotel São Bento e que você estava se esvaindo em sangue. De maneira que eles tenham que fazer uma internação, nem que seja provisória”.
“Fui internado e só pensava na vida: - Quanto tempo será que eu vou ficar aqui? Será que eu vou ver minha família novamente? Eu trabalhava muito, fazia muito esforço, não tinha uma vida muito regrada de descanso e alimentação. Os médicos resolveram aplicar um pneumotórax porque deu um derrame no pulmão e as paredes se colaram. Com o tempo, fui melhorando. O meu interesse era me restabelecer o quanto antes, voltar ao trabalho e à minha família”.
“Fiz a cirurgia e melhorei muito. O tratamento foi bom, muito longo, mas eu não curava. Aconselharam-me a mudar de médico. Fiquei constrangido, mas precisava fazer uma tentativa. Consultei o Dr. Paulo e ele me explicou que a lesão era no ápice do pulmão, um lugar de difícil acesso. Eu poderia me restabelecer, mas que nada impediria de ter um resfriado e a tuberculose voltar. A sugestão era fazer uma cirurgia que cortasse algumas costelas até atingir o pulmão para que ele ficasse isolado. Não tinha muita alternativa. Naquela época, ainda não existiam antibióticos como a penicilina.”
“Quem ia para a cirurgia, dificilmente voltava. Muitos morriam na própria mesa de operação. Eu concordei com a cirurgia. Seria melhor morrer do que ficar com essa preocupação. Se não morrer eu fico bom e vou embora para casa. Escrevi para minha mulher contando que eu tinha decidido fazer a cirurgia, que eu venceria mais essa batalha. Em vez de escrever, minha mulher foi até Belo Horizonte me fazer uma visita. Fiquei maluco de satisfação. Fazia mais de um ano que a gente não se via. Ela estava ali, me dando nova vida”.
MARCAS DO PASSADO
Lembranças de morrer
(Álvares de Azevedo – morto de tuberculose aos 21 anos)
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida
À sombra de uma cruz e escrevam nela:
Foi poeta, sonhou e amou a vida.
Operário de Santa Luzia, 56 anos, Luiz conversa mansamente com a equipe de reportagem. Na hora de posar para fotos, porém, recua da boa vontade inicial. Parece constrangido. Mais alguns dedos de prosa e o paciente do Hospital Eduardo de Menezes revela o verdadeiro motivo do acanhamento. Na mesinha, ao lado da maca, está um cigarro. Parece um crime fumar com os pulmões tomados pela tuberculose. Mas Luiz está esperançoso. Enumera 42 dias sem pôr cigarro na boca. Já conta com o amanhã, e então serão 43. Parece pouco? É uma eternidade, considerando que ele se iniciou no hábito aos 8 anos. Quase meio século de nicotina. Reconhece, com sorriso tímido, que, ao ser internado, não tinha forças nem para ir ao banheiro. Pesava menos de 40 quilos, mas, naquele dia, realizou a façanha de andar até o pátio, pela primeira vez. Lá, conseguiu o cigarro fiado, com outro interno. Perguntado se desejava se livrar do maço, Luiz responde: “Não! Deixa ficar aí, me tentando. Qualquer dia despedaço ele e mando o vento levar embora...”.
“Por favor, não coloca isso na matéria, porque a minha mãe ainda não sabe. Ela acha que tenho só tuberculose. Se souber desse jeito, pode até passar mal, pois tem problemas no coração. Penso em fazer, primeiro, uma reunião com meu irmão e depois tomar coragem de contar para ela”, implora o soropositivo Mauro (nome fictício), solteiro. Sua identidade está preservada. A sombra do rosto aparece parcialmente, coberto pela máscara N95, capaz de filtrar partículas inferiores a 5 micra (incluído o bacilo da tuberculose). Mauro não sabe dizer como contraiu a Aids. Admite ter “aprontado bastante” nos últimos cinco anos. “Meu pulmão está reagindo bem. Quando me internei, estava escarrando muito, me sentindo fraco”, diz o paciente, empenhado em se recuperar, fazendo longas caminhadas nas imediações do hospital. O entorno é arborizado e agradável aos olhos, como mandava a cartilha contra a tuberculose até meados do século passado, quando a doença ainda não tinha cura conhecida.