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Estado de Minas

Vítima da tuberculose deixa depoimento emocionado sobre a internação

Depoimento de bancário que se internou voluntariamente em BH, para preservar a família, é relato emocionado de alguém que enfrentou a peste e sobreviveu para contar a história


postado em 09/08/2015 11:00 / atualizado em 09/08/2015 14:12

Anthenor e a mulher dele, Fernandina Caldas Farias, que também viria a falecer, aos 98 anos, há um ano e meio, contaram em detalhes a saga iniciada pela tuberculose(foto: Arquivo pessoal)
Anthenor e a mulher dele, Fernandina Caldas Farias, que também viria a falecer, aos 98 anos, há um ano e meio, contaram em detalhes a saga iniciada pela tuberculose (foto: Arquivo pessoal)

Até 1944, ano da descoberta da estreptomicina (primeiro medicamento contra a tuberculose), receber o diagnóstico de tísico equivalia a ser apresentado à própria morte. A possibilidade de cura demorou a chegar ao Brasil. “A tuberculose matava. Se vou morrer mesmo, então vou morrer longe. Não posso ficar em casa, porque posso contaminar minha família.” O relato comovente é de Anthenor de Braga Faria, que, naquela época, decidiu se isolar do contato com a mulher e os seis filhos, internando-se espontaneamente em um sanatório de Belo Horizonte, “onde se dizia que até a poeira curava”.

Antes de morrer de câncer, aos 95 anos, em 2006, o bancário aposentado prestou depoimento histórico ao Portal da Velhice, projeto de recuperação da história oral conduzido por pesquisadores da PUC de São Paulo. Anthenor e a mulher dele, Fernandina Caldas Farias, que também viria a falecer, aos 98 anos, há um ano e meio, contaram em detalhes a saga iniciada pela tuberculose, que interrompeu uma promoção no banco, determinou o afastamento das funções e provocou a sua retirada da família, do emprego e da terra natal, por cerca de dois anos.

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Como ele, de uma hora para a outra tuberculosos de todo o país desapareciam das próprias vidas, sem dar maiores avisos. Era vedado tocar no nome da doença contagiosa dentro de casa, sob o risco de ser execrado por vizinhos e parentes próximos. “Meus pais esconderam das crianças essa passagem. Não sei ao certo se papai veio para BH por causa do clima ou em busca de tratamento. Eu imaginava o que estava acontecendo, mas ninguém nunca me contou oficialmente sobre a tuberculose. Devagarzinho, fui juntando as peças até descobrir”, explica o aposentado Flávio Antônio de Souza Vidal, hoje com 71 anos e morador do Bairro Funcionários, na Região Sul de BH. Ele rememora a única visita feita por ele e os irmãos ao pai no sanatório. “Eu era pequeno, mas lembro que meu pai chegou na janela e deu tchau pra gente, lá de longe”, completa.

Flávio é um dos quatro filhos de Marinho de Souza Vidal, que se tornou amigo, quase irmão de Anthenor, quando ambos estiveram internados no Sanatório Hugo Werneck, vinculado ao Instituto de Previdência dos Bancários. Como o colega, Marinho ainda viveria por longos anos, até partir, aos 88, com pneumonia. Antes, colaborou como voluntário do então Hospital Marques Lisboa (atual Hospital Madre Teresa, na Avenida Raja Gabaglia), que aceitava tuberculosos sem condições financeiras, como indigentes. “Os dois fizeram lá no sanatório uma amizade que durou a vida toda”, conta a filha de Anthenor, Fernanda Caldas Farias, de 67 anos, que mora em São Paulo.

Fernanda incumbiu-se de digitar o conteúdo de dois cadernos e meio redigidos pela mãe dela, Fernandina, que deixaria seis filhos aos cuidados de familiares em Maceió (AL) para passar em torno de seis meses ao lado do marido Anthenor no sanatório de BH, de onde voltaria grávida. Bem mais tarde, nos anos seguintes à morte do marido, ela escreveu à mão suas memórias, incluindo trechos em que descreve aspectos saudáveis da convivência no sanatório. “Se males há que trazem algo de bom, como ingenuamente se diz, as amizades, sólidas e permanentes, construídas nos dias tristes do Sanatório Werneck, tiraram um pouco do amargo travo daqueles momentos”, comentou ela, cujas histórias estão reunidas em blog na internet: diariodadonagorda.wordpress.com.

Anthenor seria submetido a uma cirurgia para a retirada de cinco costelas, abrindo caminho no peito para respirar. Devido à hemorragia, o médico parou na quarta costela. Era obrigado a deitar em cima do corte, para cicatrizar. Mas ficou curado. Em setembro de 1947, voltou de vez para Maceió. Ao todo, ficou três anos afastado do banco. Recomeçou a vida e tomou posse no cargo ao qual havia sido promovido, como contador bancário em Ouro Fino, interior de Minas. Em 1951, foi nomeado gerente de Itajubá, onde iria inaugurar a primeira agência do Banco do Brasil. Depois de nove anos, foi transferido para São Paulo.

SUSPIROS DE UM DOENTE

O diário do bancário aposentado Anthenor de Braga Faria, que se internou voluntariamente em um sanatório de Belo Horizonte na década de 1950

“Era o ano de 1945. Cheguei em Maceió tossindo, com mal-estar e dor de cabeça. Fui ao médico, que fez uns exames e me disse: “Você está com um problema sério no pulmão. É tuberculose”. Tinha sido promovido a contador de Outro Fino (MG) e não poderia assumir. Fui ao banco e disse que, no dia seguinte, não voltaria mais lá. Tinha que tirar uma licença. Naquele tempo, doente do pulmão era como um leproso. Os amigos se afastavam, não queriam saber da gente.”

“Cheguei em casa e pensei: “Não posso ficar aqui porque posso contaminar minha mulher e meus filhos”. Se vou morrer mesmo, então vou morrer longe. Naquela época não havia medicamentos, a tuberculose matava. Eu precisava ser realista. Falei com o médico que iria me tratar em Belo Horizonte. Falavam que a poeira de Belo Horizonte curava”.

“Tirei licença médica, tomei o avião e fui embora. Internei-me no Hospital Hugo Werneck. Fui direto para um hotel. O gerente me olhou e se assustou. Eu estava cadavérico. Pesava 40 quilos. Percebi que ele não gostou da minha aparência e disse que não tinha vaga. Fui para outro hotel e consegui um quarto. Tentava comer umas frutas que eu tinha comprado, mas não tinha vontade de nada. Só pensava na minha família, minha mulher sozinha, com seis filhos, sem recursos. Aquilo era uma dor que ninguém imagina. Passei a noite toda tossindo.”

“De manhã, levantei, tomei café no quarto e fui até uma agência do Banco do Brasil levar os documentos para a internação. Chegando na agência bancária, disse que queria falar com o senhor Osvaldo e o rapaz respondeu: '- Não se preocupe, você vai se curar”. Essa criatura foi um anjo na minha vida, mas nesse dia começou minha odisséia. Ele me mostrou algumas pessoas ali no banco que ficaram doentes e se curaram”.

Bancário Anthenor de Braga Farias e a mulher Fernandina, em visita de seis meses no Sanatório Hugo Werneck em 1946(foto: Arquivo pessoal)
Bancário Anthenor de Braga Farias e a mulher Fernandina, em visita de seis meses no Sanatório Hugo Werneck em 1946 (foto: Arquivo pessoal)


“O problema era que o hospital Hugo Werneck não estava mais atendendo funcionários do Banco do Brasil. Teria que me internar nos hospitais dos bancários, mas eles estavam sempre lotados. O Osvaldo chamou o médico do banco e contou a história para ele. Ele me olhou e disse: 'Você vomitou muito sangue?”. Você vai dizer a eles que eu fui chamado pelo Hotel São Bento e que você estava se esvaindo em sangue. De maneira que eles tenham que fazer uma internação, nem que seja provisória”.

“Fui internado e só pensava na vida: - Quanto tempo será que eu vou ficar aqui? Será que eu vou ver minha família novamente? Eu trabalhava muito, fazia muito esforço, não tinha uma vida muito regrada de descanso e alimentação. Os médicos resolveram aplicar um pneumotórax porque deu um derrame no pulmão e as paredes se colaram. Com o tempo, fui melhorando. O meu interesse era me restabelecer o quanto antes, voltar ao trabalho e à minha família”.

“Fiz a cirurgia e melhorei muito. O tratamento foi bom, muito longo, mas eu não curava. Aconselharam-me a mudar de médico. Fiquei constrangido, mas precisava fazer uma tentativa. Consultei o Dr. Paulo e ele me explicou que a lesão era no ápice do pulmão, um lugar de difícil acesso. Eu poderia me restabelecer, mas que nada impediria de ter um resfriado e a tuberculose voltar. A sugestão era fazer uma cirurgia que cortasse algumas costelas até atingir o pulmão para que ele ficasse isolado. Não tinha muita alternativa. Naquela época, ainda não existiam antibióticos como a penicilina.”

“Quem ia para a cirurgia, dificilmente voltava. Muitos morriam na própria mesa de operação. Eu concordei com a cirurgia. Seria melhor morrer do que ficar com essa preocupação. Se não morrer eu fico bom e vou embora para casa. Escrevi para minha mulher contando que eu tinha decidido fazer a cirurgia, que eu venceria mais essa batalha. Em vez de escrever, minha mulher foi até Belo Horizonte me fazer uma visita. Fiquei maluco de satisfação. Fazia mais de um ano que a gente não se via. Ela estava ali, me dando nova vida”.

MARCAS DO PASSADO

Lembranças de morrer

 

(Álvares de Azevedo – morto de tuberculose aos 21 anos)

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida
À sombra de uma cruz e escrevam nela:
Foi poeta, sonhou e amou a vida.

(foto: Euler Júnior/Em/DA Press)
(foto: Euler Júnior/Em/DA Press)
A tentação da nicotina

Operário de Santa Luzia, 56 anos, Luiz conversa mansamente com a equipe de reportagem. Na hora de posar para fotos, porém, recua da boa vontade inicial. Parece constrangido. Mais alguns dedos de prosa e o paciente do Hospital Eduardo de Menezes revela o verdadeiro motivo do acanhamento. Na mesinha, ao lado da maca, está um cigarro. Parece um crime fumar com os pulmões tomados pela tuberculose. Mas Luiz está esperançoso. Enumera 42 dias sem pôr cigarro na boca. Já conta com o amanhã, e então serão 43. Parece pouco? É uma eternidade, considerando que ele se iniciou no hábito aos 8 anos. Quase meio século de nicotina. Reconhece, com sorriso tímido, que, ao ser internado, não tinha forças nem para ir ao banheiro. Pesava menos de 40 quilos, mas, naquele dia, realizou a façanha de andar até o pátio, pela primeira vez. Lá, conseguiu o cigarro fiado, com outro interno. Perguntado se desejava se livrar do maço, Luiz responde: “Não! Deixa ficar aí, me tentando. Qualquer dia despedaço ele e mando o vento levar embora...”.

(foto: Euler Júnior/Em/DA Press)
(foto: Euler Júnior/Em/DA Press)
Depois do vírus, o bacilo

“Por favor, não coloca isso na matéria, porque a minha mãe ainda não sabe. Ela acha que tenho só tuberculose. Se souber desse jeito, pode até passar mal, pois tem problemas no coração. Penso em fazer, primeiro, uma reunião com meu irmão e depois tomar coragem de contar para ela”, implora o soropositivo Mauro (nome fictício), solteiro. Sua identidade está preservada. A sombra do rosto aparece parcialmente, coberto pela máscara N95, capaz de filtrar partículas inferiores a 5 micra (incluído o bacilo da tuberculose). Mauro não sabe dizer como contraiu a Aids. Admite ter “aprontado bastante” nos últimos cinco anos. “Meu pulmão está reagindo bem. Quando me internei, estava escarrando muito, me sentindo fraco”, diz o paciente, empenhado em se recuperar, fazendo longas caminhadas nas imediações do hospital. O entorno é arborizado e agradável aos olhos, como mandava a cartilha contra a tuberculose até meados do século passado, quando a doença ainda não tinha cura conhecida.

Médicos falam sobre a situação da tuberculose no Brasil


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