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Estado de Minas

Noel Rosa buscou em BH os ares da cura, mas não resistiu aos chamados da boemia carioca

Sambista do Rio de Janeiro foi um dos incontáveis artistas a contrair a doença que misturava poesia e decadência


postado em 10/08/2015 11:00 / atualizado em 10/08/2015 08:30

O sanatório que abrigou o autor de Com que roupa eu vou, onde hoje fica o Centro de Especialidades Médicas: fugas e desculpas em forma de poema(foto: Arquivo EM)
O sanatório que abrigou o autor de Com que roupa eu vou, onde hoje fica o Centro de Especialidades Médicas: fugas e desculpas em forma de poema (foto: Arquivo EM)
 

Nenhuma outra doença foi tema de tantas poesias, músicas e livros no meio artístico e literário dos séculos 19 e 20. “Chamam-na de doença, queixa do peito, fininha, seca, tísica, magrinha, delicada, toda sorte de eufemismos para não lhe mencionarem o nome certo. Como se nele houvesse mesmo perigo de contágio”, descrevem João Máximo e Carlos Didier, biógrafos do grande sambista carioca Noel Rosa, que morreu aos 26 anos de tuberculose. Pouco tempo antes de partir, em 1937, o autor de Com que roupa eu vou passaria uma temporada de quatro meses em Belo Horizonte, por prescrição médica, em 1935.

De início, Noel Rosa hospedou-se na casa dos tios Mário e Carmem, na Rua São Manoel, no Bairro da Floresta, Região Leste da capital. Com muito custo, concordaria em se internar no sanatório localizado onde hoje fica o Centro de Especialidades Médicas, ligado à Santa Casa de Misericórdia. Teria sido atraído pela fama do médico Paulo de Sousa Campos, um dos mais renomados especialistas em tuberculose da época. Recebia também os cuidados de Mário Vaz de Melo, assistente do médico.

“Convivi por muitos anos com o doutor Mário, que era o médico em contato direto com Noel. Naquela época, os pacientes ficavam mais ou menos confinados nos sanatórios. Para sair, precisavam de autorização. Mas Mário comentava que Noel Rosa saía à revelia para as noitadas. Depois, deixava bilhetes se desculpando em versos, contando aonde tinha ido e a hora em que voltou”, afirma Frederico Ozanam de Fuccio, de 74, contemporâneo de Vaz de Melo. Ele se recorda inclusive de ter visto um desses bilhetes, mas não tem segurança para garantir se a caligrafia era mesmo do músico. “A importância de cuidar de Noel Rosa só veio à tona anos depois, em conversas entre o pessoal antigo da tisiologia. Ele era mais conhecido no Rio e não era essa expressão toda que se tornou depois da morte” completa.

Outra hipótese é de que o estigma em relação aos pacientes com tuberculose e o respeito ao nome do poeta calaram os dois médicos que dele cuidaram pessoalmente. Sousa Lima e Vaz de Melo se tornariam amigos, dividindo por 56 anos o consultório médico. Partilharam também da total discrição em relação ao paciente famoso. “Nunca soube que Noel vinha a BH para se tratar com o papai”, surpreendeu-se o engenheiro Paulo de Sousa Lima Júnior, de 73 anos. Ele é um dos cinco filhos de Paulo, que se formou em tisiologia em 1927 e morreu em 1997, uma semana antes de fazer 95 anos.

"Não gosta de Belo Horizonte? Noel Rosa respondeu: 'Sim, mas prefiro viver um ano no Rio do que 10 aqui.'" - trecho da biografia do sambista carioca (foto: Divulgação/Ag. O Dia)
"Meu pai nunca ventilou esse assunto em casa”, comenta também a filha do assistente do médico, Eleonora Vaz de Melo Gomes de Carvalho, de 70 anos. Com boa memória, a professora se recorda com saudades dos morangos cultivados pelas freiras que ajudavam no então Sanatório Hugo Werneck, frutas que eram glaçadas pela mãe. Segundo ela, Vaz de Melo costumava trazer também licores de leite, das terras então longínquas do Barreiro. Em relação à vinda de Noel Rosa por BH, ela se orgulha de não ter qualquer lembrança a respeito. “Meu pai era de uma correção irrepreensível. Era uma pessoa discreta, que sabia guardar o juramento médico”, elogia.

Nascido em 1917, Vaz de Melo tinha 25 anos quando se formou em tisiologia pela Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro. Morava com a família no Bairro Floresta e, às terças-feiras, atendia no Sanatório Hugo Werneck, bem distante. Envaidecida, Eleonora mostra as fotos da época do pai, que receberia honrosos elogios no Livro de Ouro do hospital. “Combatia a insidiosa e inexorável peste branca com honestidade e conduta médica ilibada”, testemunhou um funcionário do serviço de Transporte. Entre os colegas, receberia o apelido de Rei do Pneumotórax. “Ele provavelmente produziu mais pneumotórax que qualquer outro tisio do mundo”, elogiou outra pessoa, por escrito.

Sigilosa ou não, a passagem do sambista Noel Rosa por BH foi uma tentativa frustrada de combater a tuberculose, doença que o mataria jovem, com mais de 200 composições escritas em seus 26 anos. Entre elas, a paródia de Looking over a four leaf clover, de Mort Dixon, em homenagem à capital mineira. A letra não escondia o convívio com a fumaça de cigarros, a cachaça e as “primas” de Noel. A segunda estrofe da mesma música, não oficial, era cantada nos botecos por Noel.

A estada de Noel Rosa em BH não durou nem seis meses. Na biografia, Didier reproduz um diálogo entre o compositor e o tio dele Mário Brown, que tentava convencê-lo a permanecer por mais tempo: “Mário Brown (...) chama sua atenção para o clima, a boa comida, o ritmo tranquilo de Belo Horizonte. Esta cidade tem operado verdadeiros milagres em pessoas doentes do pulmão. Não gosta de Belo Horizonte? Noel Rosa respondeu: ‘Sim, mas prefiro viver um ano no Rio do que 10 aqui.’ Deixando essa última frase premonitória, Noel foi embora de volta para a Vila Isabel, onde morreria em menos de dois anos.”

MARCAS DO PASSADO

Belo Horizonte  

(Noel Rosa - morto de tuberculose aos 26 anos)

Belo Horizonte
Deixa que eu conte
O que há de melhor pra mim
Não é o bordão deste meu violão
Nem é a prima que eu firo assim
Não é a cachaça
Nem a fumaça
Que no meu cigarro vi
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
Bem mesmo é estar aqui...”




Prontuário da epidemia


No domingo, a série “Marcas do passado” mostrou que a tuberculose ajudou a escrever a história de Belo Horizonte, que nas primeiras décadas do século 20 tornou-se conhecida como cidade-sanatório. Quase 100 anos depois da epidemia que fez multiplicar hospitais pela capital, a doença volta a assustar, com o surgimento de bacilos multirresistente, que matam silenciosamente. Com isso, nos hospitais especializados, que em outros tempos receberam levas de tísicos vindos de todas as partes do país, o tratamento ainda desafia médicos e pacientes, tal como na época em que o mal inspirava e matava gerações de poetas. Doentes vivem em alas de isolamento, onde o acesso é restrito e o uso de máscaras especiais, obrigatório.


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