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Estado de Minas MARCAS DO PASSADO

Antigos sanatórios para tratar tuberculosos viraram hospitais de referência em BH

Segunda reportagem da série mostra que peste responsável por atrair doentes de todo o país à cidade deixou uma herança positiva: boa parte da atual estrutura de saúde de BH


10/08/2015 11:00 - atualizado 10/08/2015 07:47

O setor de tuberculose do Hospital Júlia Kubitschek, um dos que surgiram no auge da crise(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)
O setor de tuberculose do Hospital Júlia Kubitschek, um dos que surgiram no auge da crise (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)

Peste branca, mal do século, tísica... a tuberculose, que marcou a história de Belo Horizonte no início do século passado, já mereceu toda sorte de apelidos pejorativos. O que pouca gente sabe é que, em que pese a epidemia e a mortalidade assustadora que causou no país, a doença deixou como herança na cidade boa parte de sua atual estrutura de atenção à saúde. Antigos sanatórios, erguidos inicialmente para acolher tuberculosos, originaram hospitais de médio e grande portes, como o Madre Teresa, da Baleia, Júlia Kubitschek e Eduardo de Menezes. Na região hospitalar de Belo Horizonte, ruas e praças homenageiam medalhões como Alfredo Balena, Ezequiel Dias e Hugo Werneck, que, em nome da epidemia, descobririam o caminho até a capital mineira e entrariam para a história da cidade. Instituições como a Escola de Medicina e a Santa Casa de Misericórdia também têm suas origens ligadas ao esforço para combater os estragos causados pelo bacilo de Koch. “Pode-se dizer que a medicina mineira é filha da tuberculose. Muitos médicos cariocas vieram para a cidade motivados pela doença”, afirma, categórico, Sílvio Paulo Pereira, de 73 anos, único cirurgião torácico remanescente da época, que chegou a fechar cavernas em pulmões doentes do mal.

Passado mais de um século, o estigma da tuberculose persiste no tempo. Nem mesmo a comunidade médica escapa ao burburinho em torno da doença. “Não sei se fica bem dizer que médicos renomados, como Hugo Werneck, eram tuberculosos”, ressalva o cirurgião torácico, preocupado com a repercussão do assunto, que na época era ventilado pelos corredores dos hospitais. Porém, Sílvio Paulo Pereira destaca que a importância da tuberculose é tanta que impacta até a terceira geração das famílias brasileiras, cujos parentes buscavam a cura em sanatórios de cidades como Belo Horizonte e Campos do Jordão (SP). “Não há quem desconheça pelo menos um caso envolvendo a doença na família. Tenho uma tia que perdeu o juízo ao saber sobre a tuberculose do noivo. Colocou a aliança na mão esquerda e nunca mais se casou”, diz.

Assim como a hanseníase, a tuberculose é enfermidade milenar, causada por bactérias da mesma família dos bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR). Há registros da existência de sanatórios no Egito antigo, 2 mil anos antes de Cristo.“A tuberculose é o camaleão da clínica médica, podendo se apresentar de diversas formas. Se você vir hoje uma mancha na chapa do pulmão, poderá cogitar câncer ou pneumonia, mas deve sempre ficar com o pé atrás. Na dúvida, pode ser tuberculose”, ensina.

Na época crítica da epidemia, havia em todo o estado somente uma faculdade de medicina e um hospital de referência: a Santa Casa de Belo Horizonte. Em 1911, Lucas Monteiro Machado uniu-se a outros 10 colegas de profissão para criar a Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais, então ligada à Pontifícia Universidade Católica (PUC). Antes mesmo de receber o diploma, em 1967, o então residente Sílvio foi assistente do médico e professor  José Feldman. “Nós conseguimos domar um pouco a doença com ação: em vez de esperar a chegada dos doentes, íamos à cata de tuberculosos no interior todo. Era feito o exame compulsório de abreugrafia, espécie de radiografia mais rápida, no lugar onde hoje funciona o Minascentro, a ex-Secretaria de Estado da Saúde. Usávamos o auditório para selecionar os raios-X suspeitos, a partir dos pareceres de três pessoas. O rolo de filme ia passando rápido e, quando surgia a mancha, um dos peritos mandava marcar o material e investigar a procedência”, explica.

“Meu avô foi internado no sanatório de Arosa, perto de Davos, na Suíca. Ao retornar para o Brasil, não poderia voltar a morar no inadequado clima do Rio de Janeiro. Veio se tratar da tuberculose em BH, mas estava tão fraco que não tinha forças sequer para pegar um palito de fósforo no chão”, confirma o engenheiro Fernando Vianna Furquim Werneck, de 70 anos. Era o ano de 1906 e a capital recém-inaugurada contava com um único posto de saúde.

FAMA E CLÍNICA
O jovem médico Hugo Werneck morava em uma casa alugada, que já não existe, na Avenida João Pinheiro e, mesmo debilitado, por dever de ofício fazia visitas constantes ao incipiente posto de saúde. “Um dia, estando lá, Hugo Werneck socorreu uma parturiente que apresentava complicações, e conseguiu salvar a mãe e a criança”, conta o neto. A partir desse episódio, voltou a clinicar, pois sua fama de bom médico correu longe. Animado, acabou comprando o terreno de então 638 hectares, que apresentava a média anual climática semelhante à de Arosa. Curiosamente, não morreria de tuberculose, mas de câncer, aos 57 anos.

Erguido em 1928, o sanatório Hugo Werneck seria inaugurado com recursos próprios do médico. Tinha capacidade para 180 leitos, mas durante a epidemia chegou a acolher mais de 250 tuberculosos. Na década de 1970, o prédio de mais de 8 mil metros quadrados, que fica numa área de 150 mil metros quadrados, se tornaria o Recanto Nossa Senhora da Boa Viagem, vinculado à Fundação de Obras Sociais da Paróquia da Boa Viagem. Hoje, está fechado e algumas das suas estruturas estão em ruínas.

(foto: Cristina Horta/EM/DA Press)
(foto: Cristina Horta/EM/DA Press)

ENTREVISTA

"É o mal de todos os séculos"

Colega de profissão de José Sílvio Resende, que morreu ano passado, o cirurgião torácico Sílvio Paulo Pereira, de 73 anos, chegou a operar as chamadas cavernas dos pulmões afetados pela tuberculose. Ajudou a salvar muitas pessoas em BH e foi assistente do médico José Feldman, um dos precursores do enfrentamento da doença na capital. Segundo ele, a tuberculose está longe de ser coisa do passado.

A tuberculose é o mal do século?
Para mim, pode ser chamada de mal de todos os séculos, porque, quando você pensa que a epidemia está acabando, vem a Aids, abrindo as portas para a tuberculose, e depois vem o câncer, que debilita o organismo dos pacientes com a quimioterapia, deixando-os mais vulneráveis ao bacilo.

Como era o tratamento nos sanatórios quando ainda não havia medicamentos?
No início da epidemia, era recomendado o regime higienodietético, que incluía repouso e boa alimentação, com frutas, leite, carne. Era, na verdade, um SPA ao contrário, feito para o sujeito engordar e adquirir resistência. Alguns se curavam. Outros, não.

Como era estar tuberculoso durante a epidemia?
Já foi romântico e até chique ter tuberculose. Os artistas plásticos costumavam pintar a figura da mulher tísica, muito magra e com as maçãs vermelhas, em função da febre alta. Mas a doença segregava e separava as pessoas. Era estigmatizante. O medo era tanto que, para conseguir lugar no Cine Brasil, por exemplo, bastava que estudantes de medicina chegassem simulando tosse. A maioria se levantava da plateia e ia embora. 

MARCAS DO PASSADO

Adeus, meus sonhos


(Álvares de Azevedo – morto de tuberculose aos 21 anos) 


Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh’alma na treva agora dorme

Como um olhar que a morte envolve em luto.


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