Januária, Itacarambi, São Francisco, Brasília de Minas e Luislândia – Próximo ao mercado de Januária, entreposto comercial e um dos municípios de maior população do Norte do estado (cerca de 68 mil habitantes, a 603 quilômetros de BH), dezenas de motoristas aguardam sob sol escaldante. Nas placas dos veículos, leem-se nomes da maioria das cidades limítrofes vizinhas. Para combinar a viagem, basta aguardar a chegada de mais um ou dois passageiros com o mesmo destino. Além dos táxis oficiais de cada município, não é raro avistar carros particulares, de placa cinza, fazendo o serviço. Apesar de considerado ilegal pelo Departamento de Estradas e Rodagem (DER/MG), que regula o setor, o transporte intermunicipal por táxi-lotação, com embarque em diferentes pontos e tarifa fixa entre cidades, é visto no interior com normalidade. Mas esse é apenas um dos diferentes meios – ou modais – que se acotovelam disputando clientes de forma clandestina ou por meio de liminares em regiões como o Norte de Minas. Essa disputa predatória afeta não só o transporte público regularizado, mas os próprios ilegais. O resultado não tarda a aparecer: com a concorrência desleal, empresas oficiais quebram, a qualidade do serviço despenca, a fiscalização torna-se cada vez mais difícil e os próprios clandestinos começam o sofrer os efeitos do vale-tudo, deixando de investir em manutenção e realimentando o quadro de degradação e precariedade. Uma dura realidade que é retratada a partir de hoje pelo Estado de Minas, na série de reportagens “Transporte sem lei”.
Brechas na legislação associadas a deficiências do serviço de transporte regular e de infraestrutura tornam as distâncias ainda maiores que as mostradas nos mapas pelo interior de Minas. Na Região Norte, junto aos chamados carros de praça irregulares, táxis e coletivos com autorizações judiciais à base de liminar, ônibus de turismo, ônibus rurais clandestinos e simples carros de passeio que oferecem “carona paga” percorrem diariamente milhares de quilômetros nas precárias rodovias que fazem ligação entre as cidades e delas com Brasília, capital mais próxima e uma das maiores esperanças de mudança para quem vive ainda em meio à seca e à falta de oportunidades de emprego.
A concorrência sem regras no transporte é agravada pelo fim de uma das maiores empresas de ônibus da região. Sediado em Brasília, o Grupo Amaral, controlador das empresas Santo Antônio Transporte e Turismo (ESA) e Transprogresso, faliu, depois de chegar a deter pelo menos 38 linhas intermunicipais e interestaduais registradas no DER/MG e na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
A bancarrota do conglomerado abriu passagem para uma legião de clandestinos e aventureiros, dando origem a uma rede que interfere na qualidade e segurança do serviço, sem horários de viagem ou tarifas fixas, com veículos precários e motoristas despreparados. A pulverização da demanda gerada pela disputa sem lei tem levado empresas de ônibus a tentar sobreviver oferecendo passagens com desconto ou, no pior dos cenários, a desistir do negócio, abrindo espaço para mais clandestinos.
CALVÁRIO A distância entre os municípios, a seca que assola a região e as más condições de circulação nas BRs 479 e 135 – principais eixos de transporte da área, que alternam trechos asfaltados com outros de cascalho e terra, tornam os deslocamentos um verdadeiro martírio, com viagens que consomem horas e assistência quase impossível em casos de acidente ou assalto. No trecho de chão de cerca de 160 quilômetros da BR-479 que liga Januária a Chapada Gaúcha, por exemplo, a visão de um carro vindo em sentido contrário pode ser comparada a uma miragem. Dos raros veículos que trafegam por lá, quase todos são ônibus rurais e um ou outro caminhão transportando mercadorias.
“Aqui, muita gente depende do Bolsa-Família para viver”, aponta o lavrador Célio Almeida de Souza, de 29 anos, morador de Poções, distrito localizado às margens da BR-479, a 65 quilômetros de Januária. Ele reclama que o plantio na roça já não rende como antes. A longa estiagem faz com que as pessoas dependam ainda mais do transporte. “Principalmente os aposentados dependem de tudo na cidade. As pessoas também não abrem mão de fazer compras lá”, afirma.
Em um intervalo de apenas uma hora, pela manhã, 10 ônibus rurais cruzam o piso poeirento da BR-479 no sentido Januária. A maioria deles, com idades que variam de 15 a 25 anos de fabricação, tem condições deploráveis. Pelo menos dois foram flagrados com placas de cor cinza, de uso particular, em desacordo com o Código de Trânsito Brasileiro, que exige a placa vermelha para veículos de aluguel.
Valdeir Pereira dos Santos, o Badinha, de 32, toma conta de um pequeno restaurante em Pandeiros, distrito de cerca de 600 habitantes, a 50 quilômetros de Januária pela BR-479. Para ele, o progresso foi embora do lugar. “De dois anos para cá, as pessoas voltaram a migrar para Brasília. O que ajudava a sustentar Pandeiros era a produção de carvão, mas os órgãos de meio ambiente suspenderam tudo”, diz. Para agravar a falta de emprego, a usina hidrelétrica inaugurada em 1957, que gerava 5,25 megawatts com as três turbinas movidas pelo Rio Pandeiros, está inoperante. Sem os funcionários da Cemig, o hotel do vilarejo fechou as portas. Nas estradas, o comerciante conta que as blitzes constantes da PM têm intimidado inabilitados a andar de moto. “A maioria das pessoas anda mesmo é de ônibus. O problema é que os motoristas cobram quanto querem pelas passagens”, denuncia.
O aposentado Jorivaldo Deotildes da Silva, de 57, se mudou de Tejuco – distrito a 24 quilômetros de Januária – para Brasília há mais de 30 anos. De lá para cá, não viu muita coisa mudar ao longo da BR-479. Ele reclama dos políticos que aparecem no período eleitoral e depois se esquecem da região. “Prometem mundos e fundos e depois somem.”
Oito linhas da região foram licitadas recentemente. Apesar de a regulamentação estar em fase de análise de documentação ou assinatura, pelo menos três trajetos de Januária estão sendo operados por coletivos clandestinos, para as localidades de Fazenda Larga, Areão e Candeal. “Tem ônibus passando toda hora na estrada, mas a maioria viaja vazia. Antes, quando rodava a antiga empresa, cobravam R$ 8 para ir até Januária. Hoje, pedem R$ 12”, reclama o agricultor Jurandir Mota Dantas, de 56.