“Meu filho morreu, meu filho morreu...”, repetia sem parar ao celular a feirante Edith dos Anjos Fernandes, de 56 anos, como se não quisesse acreditar na realidade do “Crack como ele é”, série de reportagens publicada pelo Estado de Minas. Na última sexta-feira, a mãe havia acabado de reconhecer no Instituto Médico-Legal (IML) de Belo Horizonte a foto do corpo do ex-jardineiro Cleneílson dos Anjos Fernandes, de 35. Dos 10 usuários de crack acompanhados durante seis meses pelo jornal, quatro estão atualmente sóbrios, dois ainda não conseguiram se recuperar totalmente, outros três não foram localizados e um não resistiu.
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"Agora eu sei o que é viver", diz ex-usuário de crack após quatro anos nas ruasLivro desvenda o universo do crack nas ruas de Belo HorizontePrimeiras-damas de Minas e BH discutem políticas públicas contra as drogasCasa em BH vai acolher filhos de usuárias de drogas de até 1 anoAos 35 anos, a ex-diarista Sandra Maria da Silva concorda com o colega de adicção Waguinho, embora não o conheça pessoalmente. Na época da série de matérias, ela estava há um ano sem drogas, prestes a receber o chaveiro comemorativo dos Narcóticos Anônimos. Após dois anos de sobriedade, completos em junho, Sandra acredita que não irá voltar ao caminho da dependência química. “Se eu der recaída, quem vai cuidar da minha família?”, pergunta a guerreira, que também conseguiu resgatar das ruas a irmã caçula, Alessandra. Já a irmã mais velha, Vanessa, que tinha entregue dois dos cinco filhos para o Juizado da Infância e da Juventude, está grávida pela sétima vez.
Além de tentar ajudar as duas irmãs, Sandra conseguiu também ajudar Vander Lúcia Lourença Souza, de 46 anos, vizinha dela no Beco das Crianças, localizado na invasão de terra, próximo ao Bairro Cachoeirinha. No ambiente propício para uso de drogas, com muita pobreza e controle total dos traficantes, Vanda havia ‘perdido’ as duas filhas dela para o crack. Ambas conseguiram se livrar da pedra e ela própria, a mãe, se absteve de usar cocaína. “É trouxa quem pensa que uma pedra vai tirar da depressão e acabar com a tristeza. Só afunda mais”, diz a mãe. “Já na primeira tragada no beréu (baseado de maconha batizado com crack), senti um gosto diferente e a boca adormeceu. Fui traída pelo meu amigo, que me ofereceu um baseado. Só via a pedra pela frente”, conta a jovem T., com um bebê de quatro meses.
Carlos Ângelo Becalli, hoje com 29 anos, é outro que permanece longe do crack. Desde a publicação da reportagem, há dois anos, ele segue a vida tentando criar uma família e seguir trabalhando. Hoje, procura um emprego depois de um ano em uma fábrica de pães. “Me dei muito bem por lá, mas como eu trabalhava em uma câmara fria, não estava me sentindo bem e pedi para sair”, conta ele, ao encontrar a reportagem do EM por acaso na Praça Sete. Orgulhoso, conta que já tem um filho de sete meses, com a atual mulher. “Meu filho nasceu com síndrome de Down e é a maior benção que eu tenho nessa vida”, afirma.
Voltando ao caso anterior, desde março a mãe estava desesperada sem ter notícias sobre o paradeiro do filho, rebatizado como Cleiton na região da Lagoinha, que ainda permanece como a maior cena de uso de crack da capital, desde a publicação da reportagem, há dois anos. Depois de procurar em hospitais, clínicas de recuperação e delegacias, Edith aceitou a ideia de buscar por Cleiton, pai de duas crianças de 10 e 14 anos, no último lugar em uma mãe espera encontrar um filho. Segundo consta, o homem havia morrido em 31 de maio e já estava sepultado há três meses.
“Pra mim, foi uma tragédia. A gente nunca acredita na morte de um filho.
Lagoinha O cenário da Lagoinha permanece praticamente inalterado desde então, se não fosse pelo assassinato a facadas de um dos mais antigos moradores da cracolândia. Dia e noite, homens, mulheres e até grávidas podem ser vistos até hoje com seus cachimbos acesos, fritando a pedra e vagando a esmo nas imediações da Pedreira Prado Lopes, maior centro fornecedor de crack da cidade. “Vocês não sabem não? Mataram ele (Cleiton) a facadas há uns dois, três meses. Ele estava tentando vender pedra perto da rodoviária. Lá não é permitido”, explicou um ex-colega de Cleiton, maltrapilho e com a barba por fazer.
Exatamente desse mesmo jeito, Cleiton havia sido personagem da reportagem sobre o crack, em 2013. Para piorar, estava coberto de branco pelos colegas, que jogaram tinta nele para vingar por uma ‘parada’ malfeita da droga.
SÉRIE PREMIADA Publicada entre 12 e 15 de agosto de 2013, a série de reportagens “O crack como ele é” acompanhou a vida de 10 usuários de crack durante seis meses em Belo Horizonte, mostrando a devastação provocada pelo uso da pedra no dependente químico e nos familiares. Recebeu o primeiro lugar no Prêmio de Jornalismo Promotor de Justiça Chico Lins pela Associação Mineira do Ministério Público (AMMP)..