Do Morro do Papagaio a Nova York, a bordo de uma história de resistência, ativismo e empreendedorismo social. Assim os jovens que compõem a representação mineira da Central Única das Favelas (Cufa) farão uma ponte aérea inimaginável até bem pouco tempo atrás. Vão participar da solenidade de inauguração do escritório global e de posse das presidências mundial e nacional da Cufa, que ocorrerá na sede das Nações Unidas (ONU). O evento será em 18 de setembro, encerrando uma semana de atividades esportivas, artísticas, culturais e debates: a Semana Global da Cufa na ONU. O comando nacional será assumido pelo mineiro Francislei Henrique dos Santos, de 36 anos, que coordena, desde 2014, a representação no estado. A presidência global ficará com o cearense José Pereira de Lima, o Preto Zezé, atual presidente nacional. Nascido no Alto Vera Cruz, na Região Leste, Francis mora há 8 anos no Morro do Papagaio, na Região Centro-Sul.
A Cufa desenvolve projetos de direitos humanos, empreendedorismo social, esporte e cultura nos 27 estados brasileiros, em mais de 400 municípios. Além do Brasil, atua em outros 17 países da África, Europa, América do Norte e América Latina.
À exceção de Francis – que já esteve em Cuba, Itália, Venezuela, Cabo Verde e Quênia – , os outros integrantes da comitiva mineira nunca saíram do país. André Luiz Gomes Lúcio, de 36, Bruno Silva, de 32, Evandro José de Oliveira, de 44, Patrícia Alencar, de 35, Roberth Michael da Silva Lima, de 23, Sabrina Álves Pereira, de 26, e Warlley Fernando, de 31, integram a comitiva mineira, que contará com mais nove pessoas. Todos estão com passagens compradas e o visto de viagem carimbado no passaporte. São homens e mulheres nascidos e criados em favelas de Belo Horizonte e que participam de projetos sociais na capoeira, no hip-hop, na dança, no cinema e no teatro. “Com meu jeito curioso, quero descobrir tudo daquele lugar. Vou conversar com todo mundo no nosso favelês.
A possibilidade de estar na megalópole enche os olhos e os corações desses jovens, que levam muitas expectativas e o histórico de ser moradores de favelas. “Espero que haja uma troca de saberes. Estou indo como mulher negra e de favela, que trabalha a questão étnico-racial desde que começou a atuar”, diz Patrícia, dançarina e arte-educadora que vai estrear o espetáculo Ancestralidade, resultado de uma pesquisa de como as culturas iorubá e banto se manifestam no cotidiano das favelas. “É uma junção das danças tradicionais – com inspiração no congado e capoeira – e urbanas”, adianta.
Poucos deles imaginavam que um dia estariam na sede da ONU, com possibilidade de encontrar o secretário-geral Ban Ki-moon. “Levo o reconhecimento desse lugar da favela e a responsabilidade de honrar essa matriz. Levo comigo o povo da favela. O pessoal da dança e do trabalho, enfim, todo mundo está orgulhoso. Levo a expectativa da minha filha e da minha mãe”, diz Patrícia. Agente comunitário e educador social do Fica Vivo no Alto Vera Cruz, André acredita que a viagem também seja uma referência positiva para os jovens de favela.
ENTREVISTA Francislei Henrique Santos, futuro presidente nacional da Cufa
“Queremos transformar o estigma em carisma”
Depois de atuar na associação de moradores do Alto Vera Cruz, na Região Leste, Francislei Henrique Santos, de 36, atuou no movimento hip-hop. Como integrante do grupo Negro da Unidade Consciente (NUC) viajou o mundo e o Brasil fazendo apresentações e shows. Nesta entrevista, ele fala ao Estado de Minas da importância de assumir a presidência nacional da Cufa.
Como se iniciou sua história de militância?
Comecei a militar em um grêmio estudantil numa escola do Alto Vera Cruz. Foi nessa época que conheci a associação de moradores. Em 1998, integrei o grupo de rap Negros da Unidade Consciente, o NUC.
Qual a importância de ter um mineiro na presidência nacional da Cufa?
Comprei a ideia da Cufa. Ter um presidente mineiro é virar os holofotes do Brasil para Minas. A pesquisa que originou o livro País chamado favela, mostra que Minas é o segundo estado com maior população morando em aglomerados no país. Nos surpreendeu, porque achávamos que era o Rio de Janeiro. Vamos fazer dessa posse um bom motivo de desenvolvimento e visibilidade de projetos e ações que acontecem no estado. Uma diretriz da Cufa é que a presidência nacional nunca fique no eixo Rio-São Paulo.
Qual a sua expectativa para essa viagem?
Em todas as viagens internacionais que fiz, eu ficava amargurado, porque estava indo só. Nesta, a minha maior satisfação é ver outros favelados comigo. Quando voltarmos, faremos a solenidade de posse em Belo Horizonte, também com uma semana de atividades artísticas e culturais em mais de 200 cidades em Minas.
O que você acha da ideia de a favela ultrapassar as fronteiras, ganhar o mundo?
Mais de 50% da população mundial vive em centros urbanos, a grande maioria em favelas. As favelas dão exemplo na questão artística, esportiva e do empreendedorismo social. A favela tomou conta do cenário nacional. Não é só uma realidade social, ela está na música, com o funk, o samba e o rap. Também temos representantes nos esportes de alto rendimento. A maior parte dos empreendedores sociais está na favela e na periferia. Muita gente não diz que é da favela por causa do estigma. Queremos transformar o estigma em carisma e colocá-lo na frente de nossas ações.
O salto do 'dono' do Papagaio
Foi no Morro do Papagaio, na casa onde Francis Santos vive com a mulher, a dançarina e arte-educadora Patrícia Alencar, de 35, e a filha, que começou a articulação para a representação da Central Única das Favelas (Cufa) em Minas Gerais. Francis se diverte ao lembrar uma situação inusitada, que, indiretamente, deu início ao processo que o levará com outros 17 moradores de favelas de Belo Horizonte aos Estados Unidos. Embora já conhecesse a entidade, ele só passou a fazer parte de seus quadros em 2013.
A ponte entre ele e o fundador da Cufa, o ativista Celso Athayde, foi o empresário Elias Tergilene, que chegou até o mineiro com a ajuda do acaso. O empresário se tornou parceiro da Cufa no Rio, mas como é mineiro, queria conhecer as favelas de BH. Sem contatos prévios, foi até uma delas. “Pegou a Hillux prateada e blindada, foi até o início da comunidade e perguntou quem era o dono do morro”, lembra Francis.
A pergunta de Elias se referia ao senso comum de que há, como nos filmes sobre as favelas cariocas, alguém do tráfico que comanda a comunidade. No entanto, os moradores levaram o empresário aos jovens que tinham atuação social destacada, como é o caso de Francis, na época à frente de atividades culturais como o CarnaFavela. Tempos depois, Francis e Celso Athayde se encontram em um evento que buscava patrocinadores, na Itália. A história do mineiro com a entidade teve como primeira ação comum o projeto de empreendedorismo social da Cufa. No ano seguinte ao que se filiou à entidade, ele assumiu a coordenação da Cufa Minas Gerais. (MMC)
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