A conclusão de inquérito policial sobre um acidente de trânsito com embriaguez ao volante e o início das investigações de outro caso envolvendo bebida e direção, ambos em Belo Horizonte, chamam a atenção para dois ingredientes cuja mistura é capaz de multiplicar tragédias no trânsito: a impunidade dos infratores e a omissão do poder público. A Polícia Civil revelou ontem que o colombiano César Augusto Martinez Loaiza, de 29 anos – indiciado por dirigir alcoolizado e provocar o acidente que matou o engenheiro Daniel de Oliveira Lacerda, de 40, na madrugada de domingo –, soma 72 pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Ele atingiu os 21 pontos que determinam a abertura de processo para suspensão do documento em março de 2014, segundo o próprio Detran/MG. Porém, a iniciativa não foi tomada pelas autoridades responsáveis e o condutor estava liberado para dirigir – o que ocorre com outros 60 mil motoristas em situação semelhante no estado. Paralelamente, a polícia informou ontem que a promoter Diandra Lamounier Morais de Melo, de 25, causadora do desastre em que a modelo Paola Antonini, de 21, perdeu uma perna, será indiciada apenas por lesão corporal culposa (não intencional) e embriaguez ao volante. Depois de mutilar a jovem, em dezembro de 2014, na Avenida Raja Gabaglia, Diandra deve pegar pena leve e dificilmente será detida.
Os delegados Rodrigo Fagundes, titular dos dois casos, e Anderson Alcântara, coordenador de Operações Policiais do Detran/MG, aproveitaram para fazer um desabafo sobre a impunidade nos casos de combinação entre bebida alcoólica e direção. Ambos defendem um aumento rigoroso nas penas para quem mata ou causa lesões graves sob efeito de álcool no trânsito. Eles argumentam que Polícia Civil não pode desrespeitar o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que qualifica casos do tipo como culposos. Eles ressaltaram que tanto o Ministério Público quanto o Tribunal de Justiça de Minas Gerais têm desqualificado com frequência inquéritos em que a autoridade policial entende que há dolo eventual (quando o autor assume o risco) em mortes ou ferimentos causados por motoristas embriagados.
“Não é tolerância zero? Se é tolerância zero, não podemos ser tolerantes. E nós percebemos que o CTB é muito tolerante. Então, é necessário uma mudança legislativa nesse ponto, para poder agravar um pouco as situações e para que as pessoas que se envolvam nessas situações possam entender sua gravidade”, defende o delegado Anderson Alcântara. Rodrigo Fagundes entendeu que, no acidente com a modelo, uma distração foi o suficiente para que a motorista perdesse o controle do carro e atingisse Paola Antonini. “Entendemos que houve imprudência da condutora ao atender o celular enquanto estava dirigindo o veículo, além da embriaguez”, explica o delegado. O inquérito será encaminhado para análise do Ministério Público, responsável por oferecer a denúncia.
O advogado Carlos Cateb, que participou da elaboração do CTB, diz que o código deveria prever a possibilidade de dolo eventual e também de penas maiores para agravantes em acidentes de trânsito, como omissão de socorro e ingestão de bebida alcoólica. “Somando tudo, o acusado deveria pegar uns 15 anos de cadeia, o que não permitira o cumprimento da pena em liberdade. O legislador federal tem que mudar isso, pois morre mais gente no Brasil em acidentes do que em qualquer outro tipo de crime”, afirma o especialista. Cateb aponta também outra situação que poderia ser implementada: “Eu defendo que a fiança seja proibida quando o caso for de embriaguez, o que garantiria pelo menos a detenção durante o processo, se o juiz não desse um habeas corpus”, afirma.
Pontuação alta
O delegado Anderson Alcântara informou que apesar, de o comerciante colombiano César Martinez ter negado inicialmente que conduzisse o veículo que bateu na van onde estava o engenheiro Daniel de Oliveira Lacerda, de 40, há relatos contundentes de que ele era o condutor, inclusive de guardas municipais que passavam pelo local. E o teste do bafômetro apontou 0,38 miligrama de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões, indicando que ele estava alcoolizado. A análise inicial do caso que junta a embriaguez, omissão de socorro e o estouro no número de pontos na carteira levou a polícia – agora – a requisitar a suspensão da carteira. “Vamos pedir à Justiça que suspenda cautelarmente o documento”, disse.
O delegado informou que, normalmente, o motorista só perderia a CNH depois de encerrado o processo administrativo, mas, como ele se envolveu em um crime com vários agravantes, o juiz pode entender que há necessidade de suspensão imediata, para evitar que o problema se repita até que a ação chegue ao fim. “Se o condutor está com 72 pontos, ele não foi suspenso por omissão do Detran”, afirma, categoricamente, o advogado Carlos Cateb.
Falta prevenção
1) Colombiano alcoolizado que causou acidente domingo na Avenida Nossa Senhora do Carmo tinha 72 pontos na carteira
2) Mesmo depois de alcançar 21 pontos, em março de 2014, limite para abertura de processo administrativo para suspensão, nenhuma providência havia sido tomada até ontem
3) Se tivesse respondido ao processo administrativo, o motorista poderia ter a carteira suspensa de um mês a um ano
4) Livre para dirigir, ele é acusado de avançar um semáforo, dirigindo alcoolizado, e bater em uma van, matando uma pessoa
Falta punição
1) Motorista alcoolizada que bateu o carro na Avenida Raja Gabaglia e causou a amputação da perna da modelo Paola Antonini foi indiciada por lesão corporal culposa e embriaguez ao volante
2) Somadas, as penas variam entre 1 e 5 anos de prisão
3) Por ser ré primária e ter bons antecedentes, mesmo se condenada ela não deve ficar presa
4) A Polícia Civil pede mais rigor no Código de Trânsito, para incluir o dolo eventual e aumentar as penas da embriaguez como causadora de mortes e lesões