A reforma da estação, erguida em 1907, não resgata apenas as lembranças da época em que vagões de passageiros cortavam Lassance – cidade batizada em homenagem a Ernesto Antônio Lassance Cunha, engenheiro-chefe da Central do Brasil.
O médico havia sido enviado pela Central do Brasil ao município para combater um surto de malária entre os funcionários da ferrovia. Mas suas pesquisas o tornaram mais conhecido pelo esclarecimento da doença causada pelo barbeiro: Chagas foi o primeiro brasileiro a desvendar todas as etapas de uma doença infecciosa: o patógeno, o vetor, os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia.
O vagão que lhe serviu de laboratório não foi preservado, mas a estação se transformou em um dos símbolos da passagem do cientista por Lassance, município emancipado de Pirapora em 1953, cuja população atual soma cerca de 6,5 mil habitantes. “A expectativa é terminar a obra de restauração em 2015, mas imprevistos podem ocorrer. Constatamos que a madeira do subsolo, por exemplo, está podre. E ela é a base da construção”, informa o secretário municipal de Obras, Antônio Silva de Carvalho. Debaixo do escaldante sol do Norte de Minas, ele acompanha o trabalho dos cinco homens responsáveis pela reforma protegido com chapéu de couro.
Todas as telhas foram retiradas do imóvel. Parte da estrutura de madeira que vai sustentar a nova cobertura já foi colocada.
A expectativa de moradores é de que a antiga estação seja transformada em biblioteca ou em ponto de apoio ao turismo – Lassance é uma das cidades que integram o circuito Guimarães Rosa (1908-1967). O município é citado pelo romancista mineiro no clássico Grande sertão: veredas, publicado pela primeira vez em 1956. Na obra, Riobaldo Tatarana, o personagem principal, descreve a cidade: “Esse lugarim Os Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance”. Os Porcos é uma cachoeira, uma das principais atrações turísticas da área rural.
No perímetro urbano, um dos cartões-postais do município é o memorial Carlos Chagas, que conta tanto a vida do cientista quanto a descoberta do Trypanosoma cruzi. O memorial foi erguido a cerca de um quilômetro da antiga estação. Objetos antigos, como equipamentos médicos e cartazes estão expostos ao público.
Marli Gomes da Silva Alves, de 55, é a responsável pela faxina do lugar. Viúva e mãe de oito filhos, dos quais três moram com ela, Marli costuma ir ao trabalho na companhia de seus dois cães, Legal e Chaulim. “O Brasil precisa de mais pessoas como o doutor Carlos Chagas”, constata.
FEITO MUNDIAL O reconhecimento não é sem motivo: o médico colocou Lassance no mapa mundial com a descoberta da doença, em uma menina de 3 anos chamada Berenice. O avanço foi noticiado por revistas especializadas em todo o planeta. A Academia Nacional de Medicina, em um fato singular, fez do cientista membro titular extraordinário.
Na época, Oswaldo Cruz (1872-1917), pioneiro no estudo de moléstias tropicais e da medicina experimental no Brasil, destacou o trabalho de Chagas: “O descobrimento desta moléstia constitui o mais belo exemplo do poder da lógica a serviço da ciência”. “Nunca até agora (1909), nos domínios das pesquisas biológicas, se tinha feito um descobrimento tão complexo e brilhante e, o que mais, por um só pesquisador”, prosseguiu.
Carlos Chagas batizou o protozoário que havia descoberto em homenagem ao amigo. De acordo com o memorial em Lassance, 1,6 milhão de brasileiros estavam infectados com a doença em 2007.
Saiba mais
Trypanosoma cruzi
O ciclo de vida do protozoário identificado por Carlos Chagas começa quando o barbeiro se alimenta do sangue do hospedeiro vertebrado, eliminando, em suas fezes e urina, o parasita. Por meio de mucosas ou ferimento na pele, eles infectam células dos hospedeiros, como as do coração. No interior destas, o parasita ganha forma arredondada, multiplicando-se por divisão binária. Quando as células estão repletas dos micro-organismos, eles se disseminam pela corrente sanguínea, infectando novos tecidos e órgãos..