Adélia Prado tinha razão ao declamar que o trem de ferro atravessa a noite para virar sentimento. A equipe do Estado de Minas embarcou na primeira viagem noturna de um trem da Vale no último domingo. O trajeto de 18 quilômetros entre Ouro Preto e Mariana é feito em uma hora e possibilita uma volta ao século 19, quando as marias-fumaças eram o principal meio de transporte dos mineiros. A reportagem embarcou com essa missão de descobrir os motivos que fazem com que o trem seja para os mineiros muito mais do que uma máquina de ferro. Se Adélia e Carlos Drummond de Andrade se encontrassem nessa viagem, o poeta certamente pontuaria que esse é um sentimento do mundo.
Às 18h, casais de namorados, pais com filhos e grupos de amigos esperam ansiosos na estação. “Vem, vem, vem passear de trem”, convida a Companhia Calor de Laura aos que esperam a partida na estação de Ouro Preto. A curiosidade é grande e, em menos de 15 minutos, os quase 300 passageiros se acomodam nos cinco vagões convencionais e no panorâmico, que ganhou janelões de vidro. Às 18h30, o apito do trem indica que vai começar a viagem.
Para entrar no clima, a recepção é feita ao som da Barroco Jazz Band. Wash board (tábua de lavar), banjo country, trompa e clarineta para tocar, ao estilo de Nova Orleans (EUA), o melhor do dixieland. Aos poucos, quem está um pouco ressabiado, se solta, dança nos bancos, e alguns até mesmo arriscam passos mais elaborados no corredor do vagão. De vagão em vagão, os músicos convidam os passageiros a dar ao ritmo americano o sotaque da mineiridade. “Oh, Minas Gerais! Quem tem conhece não esquece jamais.
Diz o ditado que mineiro não perde o trem, mas a aposentada Aparecida Pira perdeu. Ela tentou comprar o bilhete da viagem, mas, mesmo não tendo conseguido, foi até a estação para ver a partida da primeira viagem do trem noturno. “O lado direito é o melhor”, avisava a quem teve mais sorte que ela.
Muita gente foi exclusivamente à cidade histórica para reviver a experiência de andar sobre os trilhos nas Minas Gerais. A professora Justa Ferreira dos Santos, de 52, chegou com um grupo de 36 pessoas, de Itaúna, para fazer a viagem. “É foxtrot! Que vontade de dançar”, balançando no ritmo do jazz. A viagem resgata memórias. Em uma cadeira de rodas e se comunicando apenas com o olhar, o aposentado Emilson Martins, de 34, mal podia conter a emoção de refazer a viagem. “Ele fez essa viagem quando criança. Então, é muito emocionante repeti-la”, diz Ivonete Ferreira, de 39, acompanhante fiel do marido, depois que um acidente de trânsito lhe tirou a fala e a mobilidade.
PAIXÃO Há quem diga que, para entender a alma do mineiro é preciso entender essa paixão, como atesta o ferroviário Gilberto Bastos da Cruz, que dedicou 39 anos dos 64 de vida ao trem. “Comecei em Mariana. Viajei para Ponte Nova, Itabirito, Sabará e Vespasiano.
Todos os sentimentos cabem naqueles vagões. Para uns, a viagem é diversão, para muitos, romântica. Bem sabe o casal Ricardo Caríssimo, de 54, e Alícia Rodrigues, de 42, que levou até vinho para a noite especial. “Como está escuro, brincamos de imaginar a paisagem.
O trem circula em quatro horários na sexta e no sábado, dois partindo de Mariana e dois de Ouro Preto; e três horários no domingo. Também parte nos feriados nacionais. A viagem contou também com apresentações da Cia. Navegante, trazendo o encanto das marionetes e distribuindo a sorte em realejo, e de um mágico. A Vale ainda estuda a possibilidade de realizar a viagem noturna mais vezes. Enquanto isso, você pode usufruir das viagens já existentes.
Os horários do trem
Sextas e sábados
Saída Ouro Preto: às 10h e às 14h30
Saída Mariana: às 13h e às 16h
Domingos
Saída Ouro Preto: às 10h e às 16h
Saída Mariana: às 14h30
Proteção ao patrimônio
Apesar de o projeto resolver um problema da cidade, moradores e turistas consideram que é preciso uma ação mais intensiva para a manutenção do patrimônio. “Temos um fluxo muito grande de turistas, que chegam na cidade e ficam perdidos”, diz a presidente da Associação dos Catadores Padre Faria. Para ela, além de mais informações, é urgente que os turistas possam contar com mais estacionamentos para deixar o carro enquanto caminham pelo Centro.
A comerciante Pilar Alves, de 55 anos, nasceu e foi criada nas ladeiras do Bairro Santo Antônio, mas considera que não há o que comemorar. “A cidade nem merece mais esse título de patrimônio cultural da humanidade. Não tem preparo para receber os turistas e a limpeza é precária. É com muita tristeza que falo isso. Vejo a decadência dia a dia da cidade. Se a Unesco vier aqui, retira o título”, completou. Apesar disso, ela destaca a restauração do telhado da Igreja Nossa Senhora da Conceição.
O secretário de Educação, José César de Sousa, afirmou que a educação patrimonial é fundamental para que os monumentos sejam preservados. “Temos que preservar as igrejas, as ruas, as praças e a população, que também é um patrimônio da cidade.”
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