Jornal Estado de Minas

Mineiros celebram surpreendentes orientações do papa sobre nulidade do casamento e aborto

Scheyla, que prepara pedido de nulidade da união: 'É um olhar de Jesus para nós' - Foto: EULER JÚNIOR/EM/D.A PRESS
O que Deus uniu, o homem não separe – reza o evangelho de São Mateus (Mt. 19,6), levado ao pé da letra, religiosamente, por milhões de casais católicos em todo o mundo. Mas o papa Francisco admite que a felicidade de pessoas separadas – e dispostas ao novo “sim” no altar – pode ser reconquistada com mais rapidez e sem macular as leis da Igreja Católica. Ao emitir um Motu Proprio, expressão em latim para documento escrito “de próprio punho”, o sumo pontífice promove mudanças nos cânones sobre a proclamação de nulidade do casamento. Com isso, simplifica o processo, que antes poderia demorar anos e não saía barato para os requerentes. Também de forma surpreendente, o líder espiritual acena com o perdão, durante do Ano da Misericórdia, que começará em 8 de dezembro, para quem praticou aborto, desde que se arrependa do ato durante a confissão com um padre.

No caso do requerimento da nulidade do casamento, as regras continuam rígidas. Inicialmente, é necessário que os cônjuges estejam divorciados. Em qualquer fase da vida a dois, independentemente do tempo de união, dizem as autoridades do clero, é possível procurar o Tribunal Eclesiástico.

Há situações que têm peso, como a violência doméstica, infidelidade, transtornos psicológicos e imaturidade no relacionamento.

Porém, a possibilidade de acelerar o desfecho do processo foi bem recebida. “Estou muito feliz, pois é prova de que a Igreja está amando os fiéis. O ato de simplificar o processo de nulidade do casamento significa acolhimento, um olhar de Jesus para nós“, afirma Scheyla Marques de Paiva, de 29 anos, moradora de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com brilho nos olhos e sorriso de alegria, ela conta que está se preparando para entrar com o pedido no Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de BH. E vai se beneficiar dos novos tempos. “Fui casada de 2006 a 2012, mas é como se esse matrimônio não tivesse existido. No total, foram cinco separações, até chegar ao divórcio.
Quando falo assim, é porque houve mentiras, falta de maturidade, enfim, não foi uma união para Deus, apenas para as pessoas”, afirma Scheyla.

Católica fervorosa desde criança, Scheyla trabalha como tesoureira de uma empresa, no Centro da capital, e, sempre que pode, reza na Igreja de São José, na Avenida Afonso Pena. No horário de almoço, ontem, ela falou sobre o reencontro com um amigo de infância, Jadilson Alves Fernandes, que continua solteiro e com quem pretende construir nova vida. “Este é o plano de Deus para nós. Veja só, nós nos conhecemos aos 3 anos de idade, namoramos na adolescência, mas ficou só nisso. Quando tiver a autorização, pretendo me casar vestida de noiva, na Igreja Mãe de Deus, em Betim, com festa e tudo o que Deus permitir“, entusiasma-se.


ESPERA
Quem já passou pela experiência sabe que o processo não é rápido. “Essa mudança é positiva, principalmente para que as pessoas saibam que é possível pedir a nulidade e casar na igreja. Muita gente nem sabe da existência do Tribunal Eclesiástico“, diz o cantor da banda Dominus, Leonardo Rabello de Oliveira, de 40 anos, pai de uma menina de 10. Para ele, vale o atual casamento com a médica Talitah Melo.
“A fé está presente o tempo todo na minha vida: trabalho com música católica, então sou muito ligado à Igreja. Ao tomar minha decisão, procurei até o arcebispo dom Walmor Oliveira de Azevedo para conversar. Acredito que uma nova união, sem a cerimônia religiosa, seria um adultério, um pecado, e não queria viver assim“, explica Leonardo.

O tempo é um dos fatores que podem assustar muitos interessados em pedir a nulidade do matrimônio – no caso do músico, foram três anos e meio de espera. “Mas tem gente que aguarda até seis anos, dependendo da situação“, observa Leonardo, lembrando que isso foi até bom, pois houve prazo para compreender com calma os seus passos. “A ficha foi caindo: estava casado com a pessoa errada.” Para o músico, a decisão do papa Francisco é fundamental: “Com certeza, vai ajudar muita gente”.

INDISSOLÚVEL O bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e presidente da Comissão para Cultura e Educação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom João Justino de Medeiros Silva, esclarece que a Igreja não anula um casamento, “que permanece um sacramento indissolúvel, um pacto, uma aliança entre duas pessoas”. Assim, ao ser decretada a nulidade, é como se nunca tivesse havido a união. Dom João Justino destaca alguns fatores que podem forçar uma união indesejada – passível do pedido de proclamação de nulidade –, como pressão familiar, interesses econômicos e gravidez não planejada. “Quando a pessoa é obrigada a se casar, pode haver problemas no dia a dia, como mentiras, desconhecimento da personalidade do cônjuge, enfim, questões que impedem que tudo dê certo. Um cônjuge que era de um jeito e de repente se torna outro”, diz o bispo auxiliar.

Atualmente, tramitam no Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de BH, em duas instâncias, cerca de 150 processos, informa dom João Justino, ressaltando que, do total, 75% deverão ter resultado positivo. Ele informa que as mudanças vão começar em 8 de dezembro.
“As dioceses têm prazo de 90 dias, a partir de 8 de setembro, para estudar os novos procedimentos, que incluem redução dos prazos de tramitação dos processos. “Realmente, trata-se de um processo lento, que costuma demorar, em média, de um ano e meio a dois anos. Com a emissão do Motu Proprio, o papa demonstrou muita sensibilidade“, diz o bispo auxiliar. O preço cobrado na primeira instância é de dois salários mínimos, e mais dois na segunda instância.

Remorso silencioso

O filho ou a filha de Maria – a urgência da situação não permitiu que ela soubesse o sexo da criança – faria 30 anos em dezembro próximo. Mas viveu apenas dois meses no útero materno até o dia em que, numa clínica clandestina no Rio de Janeiro, a moradora de Belo Horizonte decidiu interromper a gestação. Passados tantos anos, a mulher, que prefere não se identificar e se protege sob o nome da mãe de Jesus, conta que não superou o trauma. “Era solteira, muito jovem, quando engravidei do namorado. Tive medo dos meus pais, de largar os estudos, enfim, de encarar uma barriga. Uma amiga me falou que o corpo era meu, que a mulher precisava ter liberdade para decidir, mas nunca me recuperei totalmente“, conta ela, aos 48 anos.

O tempo passou, Maria se casou com o mesmo namorado, teve dois filhos, mas nunca se esqueceu da noite gelada em que pegou o ônibus na rodoviária rumo à capital fluminense. “Carrego a culpa, a dor.
Aborto não é fácil, me arrependo, embora fossem outros tempos. Com essa decisão do papa Francisco, vou me confessar e pedir perdão. Ficarei mais leve“, desabafa.

Dom João Justino explica que no Ano da Misericórdia, que vai de 8 de dezembro próximo a 20 de novembro de 2016, o Vaticano estende a todos os padres a faculdade de perdoar o “pecado do aborto“, o que é reservado aos bispos diocesanos. Ele adianta que nas paróquias da Arquidiocese de BH, párocos e vigários paroquiais já têm essa autorização. “É importante frisar que as pessoas devem se confessar e se declarar arrependidas para ter o perdão. Outro aspecto importante é que o aborto não é de responsabilidade apenas da mulher. Estão envolvidos o pai, o médico, os funcionários da clínica, muitas pessoas”, afirma.

O bispo afirma que o aborto é um assunto muito delicado, que move uma “indústria”, e os responsáveis devem se penitenciar. “É pecado grave para a Igreja. Todos os envolvidos devem assumir o compromisso de não voltar a praticá-lo”, alerta. No documento em que tratou do tema, o papa descreveu o “calvário existencial e moral” enfrentado pelas mulheres que põem fim à gravidez e disse que tinha conhecido muitas “que carregam em seus corações a cicatriz dessa decisão angustiante e dolorosa”.

NOVOS TEMPOS

Conheça as mudanças propostas pelo papa Francisco para os processos de nulidade dos casamentos nas Igreja

    1)   
 O processo de nulidade do casamento, no Tribunal Eclesiástico, dura atualmente de um ano e meio a dois anos, dependendo do número de testemunhas (de cinco a 10 pessoas). Com a mudança, o prazo pode cair para menos de um ano. Em alguns casos, pode ser ainda mais rápido

    2)    Os requisitos, porém, continuam. Inicialmente, é indispensável que os cônjuges estejam divorciados. Situações como violência doméstica, infidelidade, transtornos psicológicos de marido ou mulher poder pesar a favor do pedido.

    3)    Os processos tramitam em duas instâncias, e a proposta é extinguir a segunda instância. Se houver necessidade, a segunda etapa será substituída pelo bispo, que é o legislador

    4)    Na Arquidiocese de BH, o custo atual é de dois salários mínimos na primeira instância e mais dois na segunda. A pessoa, chamada de demandante, pode pedir isenção, se apresentar uma carta do titular da sua paróquia atestando a falta de condições para o pagamento

    5)    As dioceses têm prazo de 90 dias, a partir de 8 de setembro, para estudar os novos procedimentos

        Fonte: Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de BH

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