Receber a notícia de que será preciso deixar para trás a horta, os vizinhos e mudar de endereço para abrir caminho a canteiros de obras e máquinas já se tornou página virada para muitos moradores de Belo Horizonte, desapropriados de áreas onde foram construídas vias e equipamentos públicos. Para alguns, que viviam em áreas de risco e eram castigados por enchentes, a mudança chega a ser tratada como presente divino. Mas sair de casa ainda é considerado tarefa árdua e assunto delicado para muita gente, mesmo diante da certeza de que é necessário contribuir com o progresso urbano.
Tem sido assim para a população da Vila Calafate, na Região Oeste da capital, onde a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) pretende construir uma bacia de detenção para evitar enchentes do Ribeirão Arrudas. No lugar, serão retiradas pelo menos 500 casas, segundo informações recebidas por moradores, em reuniões com representantes da prefeitura para tratar do assunto. Mas a data para início da obra ainda não foi divulgada. “Isso é horrível, porque a gente sabe que vai ter uma obra e não pode fazer nada em casa. Nem mesmo uma reforma”, lamenta a dona de casa Eunice Stief, de 45 anos, moradora da Rua Bimbarro, na Vila Calafate, há seis anos. Ela e o marido, o aposentado Léo Stief Júnior, de 66, moram em uma casa com muitos cômodos, garagem e quintal e temem pelo valor da indenização. “Não queremos a proposta de mudar para apartamento, pois sempre moramos em casa. Mas queremos receber um valor justo pela nossa casa. Essa incerteza nos atormenta e atrapalha o andar das nossas vidas”, afirma Léo.
Apesar de o decreto para início do processo de desapropriação na área onde será construído o “piscinão” do Bairro Calafate ter sido publicado no Diário Oficial do Município (DOM) em maio do ano passado, a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) ainda não tem previsão nem mesmo para abertura do processo de licitação. Segundo o órgão, responsável pela obra, o início das intervenções depende da liberação de recursos do governo federal, o que ainda não ocorreu.
DÚVIDA Enquanto isso, as vizinhas Núbia Dolores da Conceição, de 41, e Thianna de Lourdes Fernandes, de 42, acreditam que a prefeitura deveria encontrar outra solução para os alagamentos, já que temem pelo futuro de suas famílias, caso tenham que sair. “Deveriam fazer obras de urbanização e drenagem. Construir galerias. E não tirar a gente daqui”, critica Thianna. A amiga completa: “O pior é viver nessa dúvida”. “Desde que cheguei aqui, há 18 anos, ouço falar em desapropriação”, reclama ela, que tem casa e comércio no local. A área, que vai da Avenida Tereza Cristina até a Avenida Silva Lobo, ao lado da Via Expressa, é a mesma onde seria construída a nova rodoviária da capital. Agora, o terreno vai abrigar uma bacia de detenção de água de chuva, com capacidade para 600 milhões de litros, para evitar o transbordamento do Arrudas na região.
Por meio de nota, a PBH esclareceu que em todos os procedimentos adotados pelo município em relação às desapropriações respeita-se, acima de tudo, a dignidade e a segurança de todos os envolvidos no processo. Além disso, informou que “os preceitos constitucionais e legais aplicáveis à desapropriação são seguidos à risca, com o objetivo de respeitar os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos, inclusive com o prévio depósito da indenização arbitrada judicialmente ou o pagamento de indenização acordada”. Ainda segundo o documento, a administração municipal tem a preocupação de reduzir os transtornos decorrentes das decisões judiciais nos processos de desapropriação, comunicando previamente os proprietários e ocupantes dos imóveis sobre a a data prevista para o cumprimento da ordem judicial e colocando toda a sua estrutura social e logística, como transporte dos desapropriados e seus pertences, à disposição.
Propostas recusadas
Para quem a desapropriação já bateu à porta e chegou como notícia desagradável, a solução é recorrer à Justiça. Assim fez o corretor de imóveis Joan Ornelas, de 67, que “bateu o pé” e garante que não vai deixar o barracão de um quarto, banheiro e cozinha no Bairro Liberdade, onde também está sendo construída uma bacia de contenção para evitar alagamentos no aeroporto da Pampulha, no Bairro Aeroporto. O motivo é o valor da indenização de R$ 22,2 mil, que ele considera insuficiente. “É um valor muito baixo e não consigo comprar nenhum outro imóvel com esse dinheiro. O que querem? Que eu saia e vá para debaixo da ponte? Não concordo com a forma como tratam a gente. Como se fôssemos bicho, que você tira de um lugar e coloca em outro. Não pode ser assim”, questiona o morador, que não aceitou a proposta da PBH de se mudar para um apartamento do programa Vila Viva. “Visitei alguns deles e não gostei do que vi. É gente de todo tipo misturada e não se tem sossego”, disse.
A reclamação é a mesma de um casal que vive no Conjunto Habitacional Vila São José, na Região Noroeste de BH. “Claro que o valor do apartamento é maior que a indenização que receberíamos. Mas não estamos satisfeitos aqui. É muita bagunça, gente bebendo, som alto. Nem todo mundo zela pela limpeza das áreas comuns e, além disso, grande parte está devendo o condomínio”, afirmou um aposentado, que prefere não se identificar, por temer represálias. Com a demolição da Vila São José, foi aberta a ligação das avenidas Pedro II, Tancredo Neves e João XXIII e, além da urbanização da área, foi construído o conjunto habitacional para onde parte dos moradores foi levada, entre outras intervenções. A obra custou R$ 115 milhões e exigiu outros R$ 26 milhões para as desapropriações.
RESISTÊNCIA Personagem emblemática da resistência para liberar o caminho dos tratores de empreiteiras na Vila São José, a aposentada Leonilda de Souza, de 74, a dona Dalva, contou que, na época da obra, até se sentou no chão quando os engenheiros da Empresa Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel) foram até a casa dela, para dizer que a construção precisava sair do caminho. “Eles me ofereceram um apartamento, mas para lá não posso levar meus filhos”, disse, na ocasião, referindo-se aos cães Pichulinha, Rosinha e Reque. Hoje, dois dos três cães já morreram e apenas Rosinha está com ela, em um barracão no Bairro Ressaca, em Contagem, comprado com o valor da indenização que recebeu. Depois de tanto resistir – ela foi a última a sair do local – dona Dalva aceitou o valor de R$ 36 mil.