Congonhas – Na lateral esquerda do adro da Basílica de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, na Região Central do estado, um ermitão construiu, há 150 anos, a Casa dos Milagres – que integra o conjunto famoso pelos 12 profetas em pedra-sabão e outras obras de Aleijadinho, intimamente ligado à religiosidade popular e reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), há 30 anos. Desde que foi erguido, o amplo salão com piso de ladrilho hidráulico – onde se destaca imenso aparador recoberto de vidro, que encerra óleos sobre tela e têmperas em madeira datados do século 19, com paredes recobertas de agradecimentos e pedidos – acolhe uma infinidade de objetos que representam a materialização da fé.
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Pagadores de promessas vivem rotina de peregrinação, sacrifício e gratidãoCírio de Nazaré: milhões de fiéis de todo o país reeditam uma das maiores manifestações da Igreja CatólicaPapa Francisco reconhece milagre atribuído a padre mineiro e o eleva à condição de beatoTradição da fita de couro benta leva fiéis a paróquia em BHDevoção a Padre Libério transformou cidade em movimentado centro de peregrinaçãoGravidez de professora considerada infértil levou à beatificação de Padre VictorConheça histórias de romeiros que sobem a Serra da Piedade em devoção a Nossa SenhoraO grupo saiu de Carmo do Cajuru, no Centro-Oeste mineiro, a 184 quilômetros de distância, em uma viagem que duraria sete dias, entre ida e volta. Há oito anos, José Nilton percorre o trecho a cavalo, mas é a primeira vez que viaja com o grupo de jovens cavaleiros de 18 a 25 anos que conduz agora. Ele lembra que, aos 12 anos, ficou 60 dias sem conseguir andar – “entrevado das pernas”, como define. Foi então que a mãe, o pai e a avó fizeram uma promessa a Bom Jesus de Matosinhos para que o menino voltasse a caminhar. “Viemos para Congonhas de caminhão.
A lavradora Maria Aparecida Inácio Lima, de 65 anos, deixou Desterro de Entre Rios, a duas horas de Congonhas, de táxi, para entregar pessoalmente na Casa dos Milagres a imensa pedra que retirou da vesícula. Diagnosticada com o problema em 2012 e sem contar com plano de saúde, ela entrou na fila do Sistema Único de Saúde para ser operada. Passou um ano sofrendo sem ser convocada para a cirurgia. “O problema é que moro na roça e eles encaminhavam o pessoal da cidade. Perdi cinco quilos enquanto esperava. Aí, peguei com Bom Jesus de Matosinhos.
José Nilton e Maria Aparecida, a exemplo de dezenas de milhares de fiéis que visitaram Congonhas entre os dias 7 e 14 do mês passado e durante todo o ano, não têm dúvida de que foram agraciados por um milagre, ainda que a própria Igreja seja extremamente cautelosa antes de reconhecer como milagrosos fatos desse tipo. Para o cônego Geraldo Leocádio, coordenador do Jubileu, a fé é um dom e as pessoas vão à festa do Bom Jesus de Matosinhos não só para pagar promessas, mas para agradecer por “bençãos concedidas”, em geral ocorrências simples. Milagres, explica, ocorrem quando há uma suspensão da ordem natural. “Um milagre acontece quando há uma intervenção divina na vida de alguém”, define.
Aconteceu comigo
“Meu filho, Herculano Eduardo Rodrigues de Souza, de 28 anos, nasceu prematuro, com 1,5 quilo. Teve parada cardíaca e falta de oxigênio no cérebro. O médico dizia que não ia durar nem 2 anos. Quando completou 1 ano e 9 meses, teve uma convulsão muito forte.
Marialva Resende Rodrigues de Souza, 47 anos, moradora de Catas Altas da Noruega, professora e organizadora de romaria há 28
A sagrada beleza do patrimônio imaterial
Sérgio Rodrigo Reis *
O Brasil tem sido pródigo em exemplos da fé popular. Em busca de aproximações com o sagrado, milhares de pessoas saem em peregrinações pelo país, em manifestações religiosas repletas de simbolismos, singularidades e de rara beleza. Mais do que eventos efêmeros, esse conjunto de celebrações e práticas leva os fiéis em direção ao nosso patrimônio imaterial, simbolizado pelas representações, expressões, conhecimentos e habilidades surgidas ao redor das crenças populares.
Associado a comunidades, grupos e, em alguns casos, a indivíduos, esse patrimônio, transmitido de geração em geração, vem sendo recriado em função de seu ambiente, de sua integração com a natureza e de sua história, com um sentido de identidade e continuidade. O patrimônio imaterial se manifesta em tradições e expressões orais, incluindo o idioma como seu veículo de transmissão nas práticas sociais e nos rituais, nos conhecimentos e práticas relacionadas com a natureza e com as artes. A facilidade para se conectar a saberes, ofícios e crenças possibilita a produção de ricas e singulares expressões da fé.
O Círio de Nazaré, em Belém do Pará, é um exemplo. Considerada uma das maiores procissões religiosas do mundo, atrai, anualmente, no segundo domingo de outubro, milhões de romeiros em homenagens a Nossa Senhora de Nazaré. Por causa da dimensão, a manifestação foi inscrita pela Unesco, em 2013, na Lista de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Trata-se da única manifestação da fé popular brasileira com tamanha deferência.
Da segunda metade do século 18 até hoje, Congonhas foi transformada em centro de peregrinação e depositária de sucessivas consagrações de milagres. De 7 a 14 de setembro, anualmente, por lá circulam em torno de 150 mil fiéis, em uma romaria de fé ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Promessa e milagre – voto e ex-voto – a transformam em testemunha da reciprocidade de dons trocados entre o humano e o divino, no plano da organização religiosa. Seja por meio da ação corporal ou da oferta material, o fiel agradece à graça alcançada à entidade sobrenatural, que lhe valeu em momento de aflição e extrema crise, constituindo-se em um dos mais belos exemplos do patrimônio imaterial de nosso povo.
* Jornalista e crítico de arte
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