Jornal Estado de Minas

Provas de fé

Casa dos milagres é materialização do sentimento que leva milhares a Congonhas a cada ano

Maria Aparecida mostra a pedra retirada da vesícula: orações a Bom Jesus para superar a lentidão do SUS - Foto: BETO NOVAES/EM/D.A PRESS

Congonhas – Na lateral esquerda do adro da Basílica de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, na Região Central do estado, um ermitão construiu, há 150 anos, a Casa dos Milagres – que integra o conjunto famoso pelos 12 profetas em pedra-sabão e outras obras de Aleijadinho, intimamente ligado à religiosidade popular e reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), há 30 anos. Desde que foi erguido, o amplo salão com piso de ladrilho hidráulico – onde se destaca imenso aparador recoberto de vidro, que encerra óleos sobre tela e têmperas em madeira datados do século 19, com paredes recobertas de agradecimentos e pedidos – acolhe uma infinidade de objetos que representam a materialização da fé.


São cartas, bilhetes, relatos de milagres, fotografias de feridas e pessoas acidentadas, retratos de crianças e de famílias inteiras, pinturas, velas brancas e amarelas, membros e cabeças em cera que não param de chegar. Se juntam a outras dezenas de milhares de objetos que compõem uma espécie de orquestra barroca de desejos atendidos. Passagem obrigatória dos romeiros que vão à cidade comemorar o Jubileu de Bom Jesus do Matosinhos – que ocorre a cada setembro, desde 1780, e neste ano atraiu 150 mil pessoas de várias regiões –, a Casa dos Milagres recebe pessoas como o chefe de cavalgada José Nilton de Oliveira Morais, de 65 anos, que chegou a Congonhas no dia 8 do mês passado com uma comitiva de mais 10 cavaleiros e dois cozinheiros de apoio.

O grupo saiu de Carmo do Cajuru, no Centro-Oeste mineiro, a 184 quilômetros de distância, em uma viagem que duraria sete dias, entre ida e volta. Há oito anos, José Nilton percorre o trecho a cavalo, mas é a primeira vez que viaja com o grupo de jovens cavaleiros de 18 a 25 anos que conduz agora. Ele lembra que, aos 12 anos, ficou 60 dias sem conseguir andar – “entrevado das pernas”, como define. Foi então que a mãe, o pai e a avó fizeram uma promessa a Bom Jesus de Matosinhos para que o menino voltasse a caminhar. “Viemos para Congonhas de caminhão.
Minha mãe trouxe meu retrato e eles fizeram o pedido. Com oito dias, eu já estava andando”, resume José Nilton, enquanto peleja para encontrar sua fotografia de criança em meio às centenas de milhares de retratos de todos os tamanhos que se sobrepõem nas paredes da sala.

A lavradora Maria Aparecida Inácio Lima, de 65 anos, deixou Desterro de Entre Rios, a duas horas de Congonhas, de táxi, para entregar pessoalmente na Casa dos Milagres a imensa pedra que retirou da vesícula. Diagnosticada com o problema em 2012 e sem contar com plano de saúde, ela entrou na fila do Sistema Único de Saúde para ser operada. Passou um ano sofrendo sem ser convocada para a cirurgia. “O problema é que moro na roça e eles encaminhavam o pessoal da cidade. Perdi cinco quilos enquanto esperava. Aí, peguei com Bom Jesus de Matosinhos.

Foi ele que iluminou, porque logo depois fui chamada e me operaram pelo SUS”, lembra. Nem mesmo o preço salgado da corrida de táxi – R$ 220 – impediu a agricultora de ir pagar sua promessa.

José Nilton e Maria Aparecida, a exemplo de dezenas de milhares de fiéis que visitaram Congonhas entre os dias 7 e 14 do mês passado e durante todo o ano, não têm dúvida de que foram agraciados por um milagre, ainda que a própria Igreja seja extremamente cautelosa antes de reconhecer como milagrosos fatos desse tipo. Para o cônego Geraldo Leocádio, coordenador do Jubileu, a fé é um dom e as pessoas vão à festa do Bom Jesus de Matosinhos não só para pagar promessas, mas para agradecer por “bençãos concedidas”, em geral ocorrências  simples. Milagres, explica, ocorrem quando há uma suspensão da ordem natural. “Um milagre acontece quando há uma intervenção divina na vida de alguém”, define.

Aconteceu comigo

“Meu filho, Herculano Eduardo Rodrigues de Souza, de 28 anos, nasceu prematuro, com 1,5 quilo. Teve parada cardíaca e falta de oxigênio no cérebro. O médico dizia que não ia durar nem 2 anos. Quando completou 1 ano e 9 meses, teve uma convulsão muito forte.

Era de noite e a gente estava na roça. Meu marido saiu correndo com a criança nos braços, desesperado, para a Santa Casa. Enquanto isso, eu corria atrás, carregando meu outro menino pequeno. No meio do caminho, perdi as forças e caí de joelhos. Então roguei e fiz uma promessa a Bom Jesus de Matosinhos. Falei que, se Deus permitisse que o Herculano voltasse perfeito, eu viria a Congonhas todos os anos para agradecer. Foi um milagre. O menino melhorou e hoje virou um homem bonito, com saúde e que já tem família. Ele está aqui comigo. Foi assim que, há 28 anos, virei dona de romaria.
Nunca faltei. Neste ano, um dia antes de viajar, fui mordida por um cachorro. Mesmo assim eu disse: se Deus quiser estarei lá! Aqui estou.”

Marialva Resende Rodrigues de Souza, 47 anos, moradora de Catas Altas da Noruega, professora e organizadora de romaria há 28

 

 

 

A sagrada beleza do patrimônio imaterial
Sérgio Rodrigo Reis *


O Brasil tem sido pródigo em exemplos da fé popular. Em busca de aproximações com o sagrado, milhares de pessoas saem em peregrinações pelo país, em manifestações religiosas repletas de simbolismos, singularidades e de rara beleza. Mais do que eventos efêmeros, esse conjunto de celebrações e práticas leva os fiéis em direção ao nosso patrimônio imaterial, simbolizado pelas representações, expressões, conhecimentos e habilidades surgidas ao redor das crenças populares.

Associado a comunidades, grupos e, em alguns casos, a indivíduos, esse patrimônio, transmitido de geração em geração, vem sendo recriado em função de seu ambiente, de sua integração com a natureza e de sua história, com um sentido de identidade e continuidade. O patrimônio imaterial se manifesta em tradições e expressões orais, incluindo o idioma como seu veículo de transmissão nas práticas sociais e nos rituais, nos conhecimentos e práticas relacionadas com a natureza e com as artes. A facilidade para se conectar a saberes, ofícios e crenças possibilita a produção de ricas e singulares expressões da fé.

O Círio de Nazaré, em Belém do Pará, é um exemplo. Considerada uma das maiores procissões religiosas do mundo, atrai, anualmente, no segundo domingo de outubro, milhões de romeiros em homenagens a Nossa Senhora de Nazaré. Por causa da dimensão, a manifestação foi inscrita pela Unesco, em 2013, na Lista de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Trata-se da única manifestação da fé popular brasileira com tamanha deferência.

Mas há outras também cercadas de peculiaridades.

Da segunda metade do século 18 até hoje, Congonhas foi transformada em centro de peregrinação e depositária de sucessivas consagrações de milagres. De 7 a 14 de setembro, anualmente, por lá circulam em torno de 150 mil fiéis, em uma romaria de fé ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Promessa e milagre – voto e ex-voto – a transformam em testemunha da reciprocidade de dons trocados entre o humano e o divino, no plano da organização religiosa. Seja por meio da ação corporal ou da oferta material, o fiel agradece à graça alcançada à entidade sobrenatural, que lhe valeu em momento de aflição e extrema crise, constituindo-se em um dos mais belos exemplos do patrimônio imaterial de nosso povo.

* Jornalista e crítico de arte

 

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