Jornal Estado de Minas

Provas de fé

Pagadores de promessas vivem rotina de peregrinação, sacrifício e gratidão

Em Belém, romarias são constantes na Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do Pará - Foto: JOÃO PARAENSE/ESP. EM

Aparecida (SP), Belém (PA),  Congonhas, Três Pontas, Caeté e Leandro Ferreira – Passava das 11h30 de 8 de setembro quando um grupo surgiu caminhando depois de uma curva da rodovia MG-270, próximo a Entre Rios de Minas, na Região do Campo das Vertentes, guiado por um homem que carregava uma cruz, a exemplo de Jesus Cristo. Aos poucos, chegavam outras pessoas, totalizando 83 peregrinos que, duas noites antes, haviam saído em romaria de Carmópolis de Minas, no Centro-Oeste mineiro, rumo a Congonhas, na Região Central do estado. O destino era o Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos, em um trajeto de 122 quilômetros, que só seria completado na manhã seguinte. Mesmo calçada, a maioria tinha os pés cheios de bolhas – alguns já os traziam enfaixados. Como pagadores de promessa, os romeiros, visivelmente exaustos, participavam da longa caminhada em agradecimento pelas graças pedidas e alcançadas, ou simplesmente rogavam por forças para enfrentar as agruras da vida.


Ano após ano, cenas como essas se repetem de Norte a Sul do Brasil, levando milhões de pessoas a pé, a cavalo, de ônibus, carro, barco ou avião, muitas delas carregando ex-votos – objetos-símbolo dos desejos atendidos, que são depositados em santuários católicos espalhados pelo país e se transformam em uma espécie de comprovante de gratidão. É nesse clima que amanhã, quando o país celebra o dia da padroeira, Nossa Senhora Aparecida, o santuário dedicado a ela em Aparecida (SP) estará em festa, à espera de 150 mil peregrinos, assim como ocorre hoje, em Belém do Pará, com o tradicional Círio de Nazaré, considerado um dos maiores eventos religiosos do mundo, arrebanhando cerca de 2 milhões de pessoas.

Para retratar essa devoção, o Estado de Minas publica, a partir de hoje, uma série de reportagens sobre a fé, sentimento que move montanhas e que, em 2014, segundo o Ministério do Turismo, levou 17,7 milhões de pessoas a visitar atrações religiosas distribuídas em 344 municípios brasileiros. Para isso, desde o início de setembro, equipes de reportagem percorreram sete cidades – Aparecida (SP), Belém (PA), Belo Horizonte, Caeté, na região metropolitana, Congonhas, na Região Central de Minas, Três Pontas, no Sul do estado, e Leandro Ferreira, no Centro-Oeste mineiro.

Por onde passam, esses devotos deixam testemunhos de fé materializados sob a forma dos ex-votos, levados às salas de milagres das igrejas, que guardam agradecimentos e pedidos. Nas paredes, estão fotos, cartas e documentos de pessoas que se consideram favorecidas pelo poder divino: no cabide, a roupa de anjo da menina que veio ao mundo depois de muita reza dos pais; na prateleira, a perna esculpida em cera de quem voltou a andar; sobre a mesa, a miniatura do barco de madeira do pescador quase náufrago em águas turbulentas...
Guiada pela fé, além de agradecer pelos desejos atendidos, parte dessa multidão busca nessas trilhas de esperança a cura para males do corpo e da alma. Nesse contexto, espiritualidade, tradição e emoção à flor da pele andam juntas, evidenciando o amplo painel da cultura e do patrimônio imaterial do país de maioria católica – 70,4% da população, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Esforço humano Quanto mais se viaja pelo Brasil, mais se vê que a fé realmente é capaz de alimentar legiões de peregrinos. Prova disso é que o turismo religioso cresce a cada dia no país. Em 2014, segundo o diretor do Departamento de Estudos e Pesquisas do Ministério do Turismo, José Francisco Salles Lopes, o número de viajantes que visitaram cidades brasileiras com tradição religiosa cresceu 12,4% em comparação ao ano anterior. Entre 2012 e 2013, o avanço já havia sido de 14%. Com igrejas centenárias e locais sagrados, um dos principais destinos religiosos do país é Minas Gerais. O estado se mantém como rota de expressão da fé brasileira em Jesus, em Maria e na bondade dos santos de devoção.
Somente o Santuário Estadual de Nossa Senhora da Piedade, na Serra da Piedade, em Caeté, na Grande BH, onde a veneração à padroeira do estado já dura mais de dois séculos, deve atrair perto de 500 mil visitantes este ano.

A experiência religiosa ou de transcendência está presente em quase todas as culturas do mundo. No Brasil, 92% da população afirma ter uma religião, indica o IBGE. Mas de onde vem o ritual da peregrinação? O empenho em pagar uma promessa? A certeza do milagre? O antropólogo e teólogo Geraldo Demori explica que, embora nunca tenha sido identificado um ponto para romaria dos cristãos, já que a fé está em todo tempo e lugar, a peregrinação a locais santos existe desde a idade antiga, mas ganhou grande impulso na fé cristã a partir do século 5, quando se acentuaram a construção e a visitação a templos sagrados.

O catolicismo, diz Demori, já desembarcou no Brasil trazendo na bagagem o rito das peregrinações, da penitência – que pode ser traduzida no esforço humano –, das promessas e do milagre. “A peregrinação está ligada à vida, que é um caminho. Os peregrinos vão para agradecer ou levar um pedido”, diz. Segundo o antropólogo, a penitência está ligada ao empenho de se redimir por algo ou para alcançar uma graça. É um esforço para vencer um desafio “com a graça de Deus”.

 

 

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