No princípio, era uma vastidão de terras virgens habitadas pelos índios. Depois, vieram os portugueses e os jesuítas trazendo com eles a fé cristã. Os colonizadores fundaram povoados, vilas e cidades, que cresceram em torno de uma capela. Some-se a isso o desembarque de escravos africanos em território nacional, com suas crenças e cultura, e o Brasil estava fértil para se transformar no caldeirão de fé, promessa e milagre que se mostra vivo e pulsante há mais de cinco séculos. O Estado de Minas encerra hoje a série de reportagens Provas de fé, iniciada domingo, sobre o esforço humano, pedidos e graças obtidas pelos pagadores de promessa que singram o Brasil todos os anos em busca de santuários católicos e outros lugares sagrados. Mas o que têm a dizer sobre fé, promessa e milagre outras grandes religiões e doutrinas que se estabeleceram no país e, além delas, a psicologia?
Em seguida, já numa cadeira de rodas, ela e o marido viajaram para Aparecida e, depois, a Guaratinguetá. No Santuário de Frei Galvão, a dentista viu as fotos dos testemunhos de milagres nas paredes e os peregrinos pegando as pílulas do religioso, que nada mais são que pedaços de papel abençoados no santuário. Quando voltou para casa, ela e a família fizeram uma novena. “Tomei cada pedacinho (de papel) como se fosse a minha cura e dizendo: 'Seja feita a vossa vontade'”, lembra. A novena acabou numa sexta-feira, antes do dia dos pais. “No sábado, eu já estava me sentindo melhor, sem dores. No domingo, fomos à casa de parentes. Na volta, eu me sentia tão fraca que, antes de trocar de roupa e dormir, tive de deitar para descansar. De repente, senti vontade de me levantar. Pus as pernas no chão e a mão na parede e fiquei de pé sozinha, depois de um ano sem conseguir fazer isso. Dei um passo e depois outro e andei do quarto à sala de jantar até a imagem de Nossa Senhora. Disse a ela: 'Você é mãe, você me entende. Quero criar minhas filhas. De lá para cá, estou curada'”, relata Vanessa.
A existência de milagres, acontecimentos fora da ordem natural e inexplicáveis à luz da ciência, não é unanimidade entre as três maiores religiões monoteístas do mundo: cristianismo, judaísmo e islamismo. E nem mesmo na doutrina espírita. “Deus é um só, uma única fonte. A diferença está na interpretação. Milagres não existem em nossas vidas, eles foram dados na vida do profeta Mohammed (Maomé) ”, acredita o guia religioso da comunidade islâmica em Minas, Mokhtar Elkhal, para quem as promessas são “chantagens com Deus”. Já os evangélicos acreditam em milagres. “Trata-se de algo sobrenatural, que normalmente não aconteceria, mas que ocorre para glorificar Deus, e não o homem”, afirma o presidente do Conselho de Pastores de Minas Gerais, Jorge Linhares, da Igreja Batista Getsêmani. Ele ressalta que todo milagre para glorificar o homem é uma incoerência com a palavra de Deus, a Bíblia sagrada.
Para a religião judaica, o milagre existe e é parte da história do povo judeu, diz o rabino da Congregação Israelita Mineira (CIM), Uri Lam. Ele explica o milagre como algo que, por um lado, foge do lugar-comum, que nos surpreende, como algo único, que não se repete. “Por exemplo, a entrega da Torá por Deus ao povo de Israel no Monte Sinai, há mais de 3.300 anos. A Torá, representada pelas Tábuas da Lei, é um fato único, que nunca mais irá se repetir: isso é um milagre”, diz o rabino. Por outro lado, a religião judaica entende que os milagres acontecem o tempo todo. “Dizem os sábios do povo judeu que para ver um milagre basta sair à janela e observar a natureza: o crescimento das flores, o passar dos dias, o nascimento de uma criança.” Ao mesmo tempo, continua o rabino, são fatos que se repetem, mas cada um deles guarda algo de particular, único, que não tem igual.
No caso das promessas, a visão é diferente. “Em vez de fazer promessas, nós rezamos diariamente para que seja da vontade de Deus nos dar forças para cumprirmos com as nossas obrigações. Pedimos para que Deus nos dê saúde e sustento para cumprirmos com aquilo a que nos propomos”, diz o rabino.
Merecimento Para os espíritas, não há milagres, mas merecimento. “Há, sim, merecimentos espirituais de quem recebe a dádiva de Deus, por meio da mediunidade”, conta Marcelo Gardini, diretor da União Espírita Mineira, instituição existente no estado desde 1908. Ele esclarece que, embora não haja ritos de promessa na doutrina, as pessoas podem fazer pedidos e receber bênçãos divinas por meio de preces, tratamentos espirituais e passes (transfusão de energia magnética).
Encontro com Deus, o sagrado, os santos e os orixás. Esse é o sentido da fé para os umbandistas, diz o zelador da Casa do Divino Espírito Santo das Almas, Pai Marcelo de Oxóssi. Milagres existem e os seguidores da religião genuinamente brasileira não têm dúvida: “Nós somos um milagre. O milagre da vida, da convivência, da existência de um Deus vivo. Milagres, na verdade, acontecem em todos os momentos”, explica. Se acreditam nos santos e nos orixás, os umbandistas também creem em promessas. “Trabalhamos com a incorporação, com a crença. Essa é nossa fé”, diz o zelador da casa localizada no Bairro São Geraldo, na Região Leste de Belo Horizonte.
Aconteceu comigo
“Desde muito jovem, sempre tive fé no Padre Libério. Ele morreu em 1980, em Leandro Ferreira, Centro-Oeste de Minas, e eu tive a graça de conhecê-lo e receber suas bênçãos, era um santo homem. Ele saía a cavalo, visitava as pessoas, benzia as casas e trazia muita paz aos lugares por onde passava. Uma vez, ele foi até a minha casa na zona rural. Pedimos para que abençoasse o lugar com sua água benta, porque apareciam muitas cobras. Depois desse dia, nunca mais elas apareceram. Quando perdi um filho que tinha acabado de completar 16 anos, eu fiquei muito triste e transtornado e foi o Padre Libério que me socorreu. Ele me deu uma benção e depois me disse: 'Toda vez que pensar no seu filho, você reza e pede a Deus por ele.' Assim eu fiz, e, aos poucos, a dor foi se acomodando. Recentemente pedi a ele a cura de um netinho que estava com problemas de saúde e fui atendido. E assim, na minha vida inteira, foram várias graças pedidas e alcançadas. Sempre fiz promessas para o Padre Libério e ele nunca falhou. Ensino uma coisa importante para os meus filhos e para minha família: promessa não é coisa de se guardar, é feita para ser cumprida.”