Mais de 10 anos depois da edição do decreto federal que determina normas de acessibilidade nas cidades e dentro das edificações, as dificuldades vividas por quem tem algum tipo de limitação física ainda são nítidas. Os problemas vão desde calçadas mal projetadas a rampas de ônibus que não funcionam, sem falar nas escadas intransponíveis até nos prédios públicos. Em Belo Horizonte, a prefeitura reconhece que ainda são muitos os desafios a serem superados, tanto na parte estrutural quando na comportamental. Ontem, cadeirantes se reuniram na capital durante o lançamento do livro A estranha, relato do escritor e artista plástico Marcelo Xavier sobre a própria experiência de seis anos em uma cadeira de rodas. Eles fizeram uma “cadeirada” por ruas da cidade apontando problemas que dificultam o trânsito nas calçadas, comparadas por Xavier à “superfície lunar”.
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Joaquim observa que, por ter mais experiência com a cadeira, consegue fazer manobras que o ajudam a superar desníveis e calçadas mal projetadas, o que não é fácil para qualquer cadeirante. “Em muitos lugares, eu passo porque empino a cadeira e as duas rodas da frente ficam levantadas, no ar.
CONFLITOS E resolver problemas em prédios antigos, como o da prefeitura, nem sempre é simples. O gerente de Atendimento Jurídico e Social da Pessoa com Deficiência, Luiz Henrique Porto Vilani, da Coordenadoria de Direitos da Pessoa com Deficiência, subordinada à administração municipal, reconhece a necessidade de melhorias na cidade, mas cita alguns entraves como o do exemplo usado por Joaquim Gonçalves. “Realmente, o prédio da prefeitura não segue o princípio da acessibilidade universal.
Para resolver essas e tantas outras questões de acessibilidade em Belo Horizonte, Luiz conta que, no ano passado, foi feito um diagnóstico das edificações públicas municipais, cujas conclusões foram discutidas em um seminário interno de sensibilização sobre a necessidade de adequação ao planejamento de todos os órgãos municipais. Para isso, está sendo criado um grupo de acessibilidade, que deve dialogar com as necessidades. “No caso das estações do Move, por exemplo, deficientes visuais foram chamados para participar de um grupo de trabalho”, explica, citando a discussão em torno dos pisos táteis. Segundo ele, uma das observações foi a de que seria mais interessante haver alguém para ajudar na locomoção e evitar risco de queda do que incluir pisos direcionais.
Com relação às calçadas, de modo geral, Luiz lembra que são de responsabilidade dos proprietários dos imóveis e que, muitas vezes, as regras são seguidas à risca, mas falta sensibilização social para o tema: “Por exemplo: o dono de uma casa faz o passeio de acordo com as normas e com piso tátil próximo ao muro. Vem o vizinho e também faz o passeio certo, mas põe o piso tátil longe do muro, o que gera a descontinuidade para quem precisa acompanhar o piso”. Da mesma forma, ele cita os elevadores modernos, “inteligentes”, que não dispõem de leitura para deficientes visuais.
O que diz a lei
Padronização desde 2004
As normas de acessibilidade são determinadas pelo Decreto Federal 5.296, de 2 de dezembro de 2004, que estabelece padrões de locais acessíveis e, seguindo requisitos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), dá diretrizes de como devem ser construídos os pontos de acessibilidade. Para facilitar o entendimento do decreto, a Prefeitura de Belo Horizonte, com o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Minas Gerais (Crea-MG), elaborou cartilhas com as diretrizes de acessibilidade dentro das cidades e das edificações, que descrevem como devem ser: sinalização; espaço necessário para mobilidade em cadeira de rodas; acesso e circulação; travessia de pedestres; faixas elevadas; mobiliário urbano (cabines telefônicas, bancas de jornal, abrigos em pontos de ônibus, semáforos); esquinas; rampas, escadas e passarelas; estacionamento; construção, manutenção e conservação de passeios; parques, praças e espaços públicos e turísticos; praias; acessibilidade ao transporte coletivo.
Circulando na ‘superfície lunar’
As experiências e dificuldades enfrentadas por um cadeirante em Belo Horizonte estão relatadas no livro A estranha, lançado ontem pelo escritor e artista plástico Marcelo Xavier, que há seis anos tem a cadeira de rodas como sua companheira fiel. Ele relata suas experiências a bordo do meio de transporte, que de estranho passou a ser imprescindível. Cadeirantes que prestigiaram o lançamento se juntaram ao autor em uma “cadeirada” saindo da Rua Piauí, no Bairro Funcionários, Centro-Sul de BH, para mostrar todos os problemas que eles enfrentam diariamente nas calçadas da capital mineira. A iniciativa teve um tom de protesto. Ao longo do caminho percorrido, desenhos eram colados indicando todos os pontos com acessibilidade ruim. Nem os espaços públicos escaparam das dificuldades.
Marcelo Xavier conta que há uma diferença muito grande nas ruas da cidade entre o espaço destinado aos carros e a área de circulação de pedestres. “De um lado corre o asfalto lisinho, sem problemas. Mas quando você sai do carro, entra no inferno.
Alguns metros à frente, ainda na Rua Piauí, o caminho do cadeirante é interrompido por um poste de concreto. “Tinha um poste no meio do caminho”, brinca Marcelo. “As nossas calçadas são pistas de obstáculos. Elas quase representam a superfície lunar”, afirma. Já na Avenida Brasil, nova colagem. Um degrau na entrada de um prédio da Secretaria de Estado de Saúde foi alvo da intervenção dos cadeirantes. Segundo eles, sem a rampa fica inviável o acesso, principalmente quando o cadeirante está sozinho.
A superfície lunar apontada por Marcelo Xavier é facilmente percebida pelo bailarino João Luís Godoy, de 51 anos. Há 20 anos, ele foi acometido por um acidente vascular cerebral (AVC) e precisou usar uma cadeira de rodas. Ao transitar com seu acompanhante, Sérgio Júnior, de 32, pela Praça Doutor Lucas Machado, no cruzamento das avenidas Brasil e Francisco Sales, ele precisou passar bem devagar para não cair. O piso está completamente ondulado, graças ao cercamento da raiz de uma das árvores da praça. Ele também possui uma cadeira motorizada com a qual anda sozinho, o que poderia complicar ainda mais a situação caso ele se deparasse com as ondulações da praça. “Qualquer buraquinho já é capaz de derrubar um cadeirante. Hoje, a minha maior dificuldade são as rampas e os buracos. Outro problema são os obstáculos como postes. Quando você os encontra, às vezes não consegue descer e precisa voltar”, afirma.
O escritor Marcelo Xavier conta que chega a andar um quarteirão inteiro com a sua cadeira de rodas e na hora de atravessar a rua não encontra uma rampa na calçada. “Há uma negligência do poder público. Por lei, a pessoa que tem uma casa ou um comércio é obrigada a cuidar da calçada em frente, mas não cuida. É capaz de passar todos os dias pelo buraco, pular esse buraco e entrar na loja maravilhosa dele, ou da casa, mas não dá um jeito na calçada. A pessoa não pensa na calçada como parte da sua casa. Ela isola aquilo ali”, reclama Xavier. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde, no endereço da Avenida Brasil sem rampa de acesso aos cadeirantes funciona o Núcleo de Judicialização, onde não há entrega de medicamentos. Todos os lugares abertos ao usuário são acessíveis, de acordo com a pasta. (Pedro Ferreira e Guilherme Paranaíba).