Jornal Estado de Minas

Áreas de Lavras Novas são de propriedade da padroeira, que tem irmandade como 'corretora'

Procissão e missa (abaixo) na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres: questão fundiária contribuiu para formar a identidade cultural do lugarejo e consolidar a maioria católica - Foto: Túlio Santos/EM/D.A.Press
Lavras Novas -
“Com-a-graça-de-Nossa-Senhora-dos-Prazeres-do-Divino-Espírito-Santo”... A expressão dita assim, como se fosse uma única palavra, faz parte do vocabulário da maioria dos moradores do distrito de Ouro Preto, que a usam como uma pontuação ao fim das sentenças. É corriqueiro agradecer à padroeira da cidade, que dá nome à igreja. Os moradores, porém, devem a ela muito mais que gratidão baseada na fé. A santa é “dona” de 268 hectares de terra no lugar, o que significa que os lotes da maioria das casas dos nativos do vilarejo turístico pertencem a Nossa Senhora dos Prazeres. Entender como é a administração do latifúndio celestial é imprescindível para compreender o passado e o presente do lugarejo, que virou uma das coqueluches do turismo e é invadido por levas de visitantes a cada fim de semana, como mostrou o Estado de Minas em sua edição de ontem.


A representante terrena da santa para assuntos fundiários é a Mesa Administrativa, nome dado ao braço gerencial da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Anterior à consagração da igreja, a entidade apropriou-se das terras em nome da padroeira, dividindo a área para o uso das famílias locais. Hoje, cuida da negociação dos terrenos e também da gestão do cemitério e do templo.

“A irmandade é um grupo de irmãos”, resume o atual presidente, o pedreiro Fernando Alves Azevedo, de 43 anos.

Fernando é o líder de Lavras Novas. Firme nas palavras, está no cargo desde o início do ano, e nele permanecerá até 2017, quando haverá outra eleição. Oito pessoas compõem a mesa e, em caso de empate em alguma votação, a manifestação do presidente vale por duas. “O povo daqui tem uma raiz muito forte, de sangue. Nosso povo sofreu pela terra e precisa ficar unido”, enfatiza.

Formada somente por homens, a mesa decide, por exemplo, se um casal de nativos deve receber um lote quando se casa. Em caso positivo, o terreno é passado por um valor simbólico para os noivos. Um lote de 400m² sai por cerca de R$ 5 mil.
“Eles têm a posse da terra, mas não a escritura. Para fazer a escritura, precisam do recibo da irmandade”, detalha Fernando.

A medida, entende Fernando, ajuda a preservar a identidade do local. Nas décadas de 1980 e 1990, muitos terrenos foram vendidos para forasteiros, pois a irmandade buscava dinheiro para reformar a igreja e promover festas religiosas. Mas isso, garante Fernando, não ocorre mais. Caso um nativo queira vender um imóvel sem o consentimento da Mesa Administrativa, precisa recorrer à Justiça e conseguir a propriedade por usucapião.

Mesmo assim, do lado da igreja há uma casa à venda, com terreno de quase 2,5 mil metros quadrados e valor de R$ 500 mil. “Os donos morreram e são vários filhos. A mesa autoriza a venda nesse caso”, explica Fernando. Quando o negócio for concretizado, porém, 20% são destinados à gestora das terras celestiais, nesse caso, R$ 100 mil.

O padre Magno José Raimundo Murta, de 51, celebra as missas da comunidade uma vez por semana, tarefa que desempenha há cinco anos.
Ele explica que a relação entre a Mesa Administrativa e a paróquia é de respeito: “A irmandade não se sobrepõe à diocese”. O padre recorda que as igrejas não podiam constituir pessoas jurídicas e as irmandades passaram a cuidar da administração e do patrimônio das paróquias. A paróquia à qual a igreja de Lavras Novas pertence é a de Nossa Senhora da Conceição, no Bairro Bauxita, em Ouro Preto.

Na década de 1970, houve conflitos entre a Igreja e a irmandade pela posse da terra, mas no fim dos anos 1990 um acordo foi firmado e a irmandade se comprometeu a não vender mais as propriedades da santa. Assim, ficou bem mais difícil para pessoas de fora da comunidade comprarem terrenos em Lavras Novas, o que poupou o Centro Histórico da construção de luxuosas pousadas.

Fernando Azevedo, presidente da Mesa Diretora: 'Ninguém passa necessidade' - Foto: Túlio Santos/EM/D.A.Press

RAZÕES HISTÓRICAS DA TERRA CELESTIAL

Para entender a questão fundiária é preciso revisitar a história de Minas Gerais e do Brasil. Uma carta de 1711, do governador e fundador de Vila Rica (hoje Ouro Preto), capitão general Afonso de Albuquerque, em que descreve estradas e caminhos da região, é o primeiro documento civil em que consta o nome de Lavras Novas. Muitos moradores dizem que a região era um quilombo. O argumento foi usado em décadas passadas e serviu como chamariz para o turismo. Porém, o distrito era catalogado pelo governo e existe documentação da qual consta pagamento de tributo pelos moradores.

local começou a ser povoado para ser uma vila voltada para a mineração. Com a presença de portugueses, índios foram escravizados em um primeiro momento, principalmente da etnia carijó, depois chegaram escravos africanos (bantos e sudaneses). Na dissertação de mestrado “Espaço, lugar, identidade e urbanização: conceitos geográficos na abordagem do turismo”, apresentada na UFMG, a geógrafa Flávia Moura de Oliveira detalha por que o lugar não era um quilombo e como a falta de documentação favoreceu a criação de mitos sobre a história local.

"Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres é construída em pedra, assim como a cruz, o que não era costume nos quilombos, que possuíam uma arquitetura bastante efêmera.
Além disso, apesar de bastante simples, ela apresenta características da arquitetura portuguesa e não influência negra. Em segundo lugar, foi curada, ou seja, reconhecida e formalizada pela Igreja, em 1742, época em que esta não aceitava os quilombos, o que indica que deveria existir uma comunidade branca vivendo ali”, escreveu Flávia.

Após o declínio da atividade minerária, a terra foi abandonada pelos mineradores e restaram no local apenas os escravos alforriados, que passaram a usufruir das terras. Isso explica a predominância de negros no distrito. Outro fato preponderante para a atual situação fundiária foi um disputa ocorrida na década de 1950, quando a Companhia Eletroquímica Brasileira pleiteou uma área na região. Comunidade e empresa chegaram a um acordo, com o intermédio da Igreja, e foi feito um registro oficial destinando 268 hectares para o patrimônio de Nossa Senhora dos Prazeres.

UNIDOS PELA FÉ, MESMO SEPARADOS


A posse das terras ampliou o senso de comunidade dos moradores de Lavras Novas. Os nativos são oriundos de cinco famílias e segundo Fernando, presidente da Mesa Administrativa, mesmo antes da chegada dos turistas a comunidade sempre viveu bem. “Ninguém aqui nunca pediu esmola. Se alguém disser que passava necessidade, está mentindo. Caso algum morador precise de algo, por perder o emprego ou ficar doente, a irmandade ajuda e ninguém precisa saber”, garante Fernando. O presidente da Mesa Administrativa acredita que todos nativos são descendentes de escravos e avalia que os antepassados eram todos baixos, com a estatura adequada para trabalhar dentro das minas.
“Pode olhar. Aqui todo mundo é pequeno”, aponta Fernando, de 1,66m.

Nos 915 habitantes de Lavras Novas, só os 15 que desinteiram a conta frequentam o único templo evangélico. Os outros são devotos de Nossa Senhora dos Prazeres. Relatos dão conta de que a imagem dela apareceu em uma gruta da região nos tempos em que o Brasil era colônia de Portugal. A fé na santa, segundo o padre Magno, é um dos motivos de as religiões neopentecostais não terem conseguido penetrar no distrito. “Eles vieram com essa história de falar mal de Nossa Senhora e enfrentaram muita dificuldade por aqui”, entende o sacerdote.

"O pessoal aqui tem mais devoção com a santa do que com Jesus”, rebate Pepita Alves de Azevedo, de 77, uma das 15 pessoas que frequentam os cultos da Assembleia de Deus. “Eu era muito católica e cantava na igreja, mas veio um pessoal de fora e algo me disse que eu deveria mudar”, explica.

Mas com a maioria católica, a missa às 16h de domingo está sempre lotada. Nem o feriado, os bares e pousadas abarrotados interferem na audiência. Na homilia, o padre Magno critica os governos federal, estadual e municipal. “Eles querem governar sem Deus. Querem o Estado laico. Enquanto os governantes estiverem governando sem Deus, nós vamos para o buraco. O Estado pode ser laico, mas as pessoas, não”, prega o padre.



MORADORES COBRAM MAIS DA PREFEITURA


A vice-presidente da associação comunitária de Lavras Novas, Maria Rosário de Fátima Correia Azevedo, de 58, lista uma série de problemas recorrentes no distrito e pede mais atenção da Prefeitura de Ouro Preto, que define como “muito ausente”. A principal queixa é em relação ao abastecimento de água. Rosário explica que a captação já não é suficiente e é preciso fazer outra. Durante o último feriado, no domingo e na segunda-feira, várias casas e pousadas ficaram sem água.

Segundo o superintendente do Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae), Wandeir José dos Santos, o sistema de abastecimento de água em Lavras Novas foi construído em 1987. O distrito cresceu com a chegada das pousadas, mas o sistema não foi ampliado. As melhorias estão previstas no Plano Municipal de Saneamento Básico de Ouro Preto, porém não há data prevista para que ocorram.

Rosário também pede mais funcionários para a escola local. Segundo ela, há na unidade uma sala de computação e uma biblioteca que são subutilizadas, pois falta mão de obra especializada. Mas o desejo da comunidade não deve ser atendido. Segundo o secretário de Educação de Ouro Preto, José César de Sousa, a sala está disponível diariamente para uso pedagógico dos professores e técnicos da escola, para trabalharem com os alunos, por isso não há previsão de contratação de profissional específico.

A tesoureira da associação de moradoras, Maria Aparecida Rocha Sabino, reclama que o ônibus que faz o transporte dos estudantes do distrito até Ouro Preto é velho e apresenta defeitos constantemente. Ela cobra mais vistorias. A Prefeitura de Ouro Preto informou, via assessoria de imprensa, que o transporte é terceirizado e que o veículo precisa atender às exigências contratuais, que incluem inspeção veicular (feita a cada seis meses). O município informa que a situação do ônibus atende às exigências de contrato.

Em relação à segurança, Rosário e Aparecida não têm queixas. Mas o presidente da Mesa Administrativa lembra que a população local salta para até 6 mil pessoas nos feriados. “A prefeitura precisa mandar guardas municipais para cá, para controlar o trânsito”, requisita. Mas eles são poucos para a cidade histórica que tem mais 11 distritos, um câmpus universitário e um calendário cultural para lá de intenso. Lavras Novas, também nesse caso, vai ter de esperar.

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