Jornal Estado de Minas

Sobreviventes da tragédia guardam apenas a memória de Bento Rodrigues

Fundado no século 18, vilarejo tinha 650 habitantes e 180 casas; só 22 não foram destruídas pela lama, que soterrou igreja, praça e o restaurante que era o point local - Foto: Montagem/Prefeitura de Mariana/Divulgação e Juarez Rodrigues/EM/D.A.Press

Mariana – Os moradores de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central, já conjugam a vida no passado. Os verbos no pretérito saem da boca ainda um pouco desajeitados e quase sempre acompanhados de uma lágrima no canto do olho, um passar de mãos no rosto ou total perplexidade no semblante. No lugar de “minha terra é linda”, está agora “era”; em vez de “lá em casa tem pimenta biquinho”, “tinha”; e “rezo sempre na Capela de São Bento”, “rezava”.

Desde o rompimento das barragens do Fundão e Santarém, da mineradora Samarco, na fatídica tarde de quinta-feira passada, soterrando o vilarejo distante 23 quilômetros da sede municipal, romperam-se também os laços com a história. Com o desaparecimento de casas seculares, da pracinha, da escola e dos pontos de convivência, sumiram também documentos, objetos pessoais, registros da unidade de ensino, pequenos guardados, enfim, a memória de 650 pessoas.

Não há mais sinal de alma viva em Bento Rodrigues, nome em homenagem a um bandeirante paulista que chegou à região das minas, no século 18, tomado pela febre do ouro e disposto a encontrar o precioso metal. Achou, fundou um povoado e acabou batizando, com seu próprio nome, o subdistrito ligado ao distrito de Camargos.

Do alto, até o ponto onde se consegue chegar, vê-se a lama poderosa que não respeitou uma casa de família, um cantinho para descansar, nem mesmo um canteiro de flores do jardim. Na ânsia de fugir da avalanche marrom, uma mulher correu com o que pôde: uma imagem de Nossa Senhora Aparecida nos braços. Para contar a história, ficou a Igreja de Nossa Senhora das Mercês e também um templo evangélico, já que o estrago maior ficou na parte baixa do lugar, onde passa o Rio Gualaxo, integrante da Bacia do Rio Doce.

Para especialistas, os danos ambientais e para o patrimônio cultural são os piores.  A presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/MG), arquiteta e urbanista Rose Guedes, diz que é cedo para avaliações técnicas, mas afirma: “Trata-se de um momento de reflexão. No local, deveria ser erguido um monumento como forma de protesto, para esse episódio ficar registrado e ninguém esquecer”.

O jovem Marlon Célio Norberto Oliveira, de 19 anos, servente de pedreiro, conseguiu escapar com a camisa do time do coração, o Atlético.
Na noite de quinta-feira, junto com os demais desabrigados, Marlon foi encaminhado para a Arena Mariana, o ginásio poliesportivo municipal preparado para receber também moradores das comunidades de Paracatu de Baixo, Pedras, Bica e outros tragicamente atingidos pela onda de rejeitos.

Todas as lembranças estão agora apenas na cabeça do rapaz, pois o notebook guardado no quarto está  sob toneladas de lama – que os técnicos da mineradora garantem não ser tóxica, mas que, para os sobreviventes, teve a força de matar o futuro. Com o rosto marcado pelo cansaço, o jovem se referiu ao lugar onde nasceu e se criou o tempo todo, no passado. Quando o repórter observou esse fato, ele levantou o olhar: “Ainda é difícil, né? Tivemos que largar tudo para trás, roupas, meu aparelho de som... Não tem como voltar ao Bento, não tem descrição para tudo que ocorreu.”

Os ex-moradores se referem com total intimidade ao vilarejo, como se falassem de um amigo, nomeando-o sempre Bento e nunca Bento Rodrigues. Marlon contou que a mãe e a irmã conseguiram emprego em Mariana exatamente no dia da tragédia e por isso se mudaram do distrito. “Foi sorte. Agora vou ficar com elas”, falou baixinho, antes de seguir rumo à nova vida.

Na Arena Mariana, o trauma ainda é grande entre aqueles que recebem demonstrações  de solidariedade em forma de donativos.

"Foram-se os laços de identidade"


A comunidade de Bento Rodrigues, com vários marcos do circuito da Estrada Real, é descrita pelos moradores, parentes, amigos e visitantes com muito afeto e sempre com uma palavra: união.
O professor de história Israel Quirino está desolado com a situação desesperadora das vítimas e lamenta as perdas. “A população terá que voltar à rotina. Perdeu-se a memória, foram-se os laços da identidade. Um dos traços marcantes de Bento Rodrigues é a união, todo mundo se conhece. Quem não é parente é amigo”, afirma Quirino.

A Igreja de São Bento, padroeiro local (do fim do século 18 ou início do 19), a Escola Municipal Bento Rodrigues, o bar e restaurante da Sandra, o point onde até “o pessoal da Samarco almoçava”, segundo os moradores, a paisagem que remonta aos primórdios de Minas, embora com a descaracterização vinda com o tempo, tudo isso agora está sob um mar de lama.

Quirino explica que havia um projeto turístico para a região, dona de fazendas, cachoeiras, culinária bem típica, artesanato e outros tesouros que deixam saudade.

A união dos moradores de Bento Rodrigues também é destacada pelo dono do hotel Müller, de Mariana, Wanderley Müller. Ele foi criado no lugar, estava sempre indo para lá nos fins de semana. As terras nas quais foi erguido o empreendimento da Samarco pertenceram ao seu pai, Orlando Müller. “Bento Rodrigues sempre foi muito rico, tinha garimpo de ouro muito forte”, disse, lembrando que, na trajetória econômica da comunidade, destacava-se, no século 19, uma fábrica de ferraduras de ingleses, a Fábrica Nova.

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