Quase 20 dias se passaram depois da maior catástrofe ambiental da história do Brasil, com 12 mortos e 11 desaparecidos, provocando uma onda de lama que atingiu o mar no Espírito Santo e lambeu do mapa o subdistrito que levava o nome de Bento Rodrigues, da histórica Mariana, com o rompimento da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco. Ironicamente, a tragédia causou um inesperado efeito reverso. Embora tenha sido decretada morta, a vila renasceu e tornou-se conhecida mundialmente na internet, graças ao vídeo de uma tevê local, que se tornou viral, com milhares de visualizações e elogios ao modo simples de viver, à arquitetura colonial e ao som de viola caipira.
“Antes da lama, nunquinha que teria esse tanto de gente assistindo. Nem eu mesma tinha visto...”, comenta Keila Vardeli Fialho Santos, de 32 anos, com expressão pensativa. Presidente da Associação de Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues, ela e duas das sócias que fabricam a apreciada geleia de laranja, limão e pimenta-biquinho foram convidadas a rever as cenas de Bento Rodrigues, como quem vê o filme caseiro de um ente querido que já se foi. A cunhada de Keila, Neuza da Silva Santos, de 39, e a sogra, Maria Félix de Souza Santos, de 67, estão hospedadas na mesma pousada, na estrada entre Mariana e Ouro Preto.
As gravações não mostram nada demais sobre Bento, como os antigos moradores se referem carinhosamente ao subdistrito soterrado, mas é isso mesmo o que encanta a todos. “Gente, olha ali a casa de Henrique”, diz uma. “O gramado estava verdinho...”, completa.
SOBREVIVENTE Nas andanças entre os destroços de Bento, Keila fez uma descoberta surpreendente. Como por milagre, a associação restou de pé, intacta, na parte alta do antigo povoado. Recentemente, a sede havia sido pintada de verde. “No vídeo, ela ainda estava na cor antiga, vermelha. Essa gravação é recente, deste ano. A gente tinha acabado de investir todo o dinheiro de um prêmio de R$ 100 mil do Banco Santander e da universidade Unisol para adequar as instalações às regras da Vigilância Sanitária. Estava tudo certinho”, conta ela, lembrando que a iniciativa conquistou os primeiros lugares entre 3 mil concorrentes no país.
Com o investimento perdido, as sete mulheres da associação tentam obter autorização para resgatar o que restou na sede , agora em área de acesso restrito, diante da preocupação com as outras barragens remanescentes do desastre – Santarém e Germano.
Leia Mais
Apesar de não atingidas, casas ficam isoladas em Ponte do Gama e região vira área de risco"É uma visão aterradora", diz educador ambiental sobre chegada de lama ao marVídeo: moradores fazem viagem virtual a Bento Rodrigues, com o Google Street ViewBombeiros asseguram que buscas por desaparecidos em Bento Rodrigues vão continuar Google Earth divulga novas imagens de Bento Rodrigues antes e depois da tragédiaMoradores querem construção de 'Novo Bento' entre Mariana e o antigo povoadoEM percorre o que sobrou de Bento Rodrigues, povoado sugado pela lamaPrefeito de Mariana quer transformar Bento Rodrigues em memorialBombeiros retomam buscas na Barragem Fundão onde três veículos foram encontradosAfluentes podem ajudar a recuperar o Rio DoceRio Doce é o retrato da maior tragédia ambiental do BrasilNOVAS ENCOMENDAS Uma notícia boa chegou com a repentina fama via internet: todos os potes de geleia estão vendidos e já há novas encomendas, sem prazo determinado para entregar. “Será que um dia a gente vai conseguir fazer funcionar nossa associação, do jeitinho em que estava, com tudo certo?”, sonha alto Neusa, encarando as amigas com olhar interrogador. Guerreiras, as mulheres dizem que não são de fugir de trabalho. Juntas, as sete são capazes de fabricar até 7 mil potes em uma semana, fazendo em média 400 unidades por dia.
“O problema maior são os pés da pimenta, que a gente plantava no quintal de casa. Em menos de cinco minutos, a lama subiu e levou tudo. Olhei para trás e não vi mais minha casa”, diz Maria, que estava tomando banho quando estourou a barragem do Fundão. Saiu enrolada na toalha, com um vestido na mão. Nem sabe dizer se fechou o chuveiro. “Foi tudo embora. Depois do que passei naquele dia, nada me assusta mais”, conta ela, que sente saudades de ‘panhar’ as pimentas nos pés, como comenta. Caso ressurja ou não a associação, Maria Félix jamais revela o segredo da receita da geleia. “Segredo a gente não conta”, afirma ela, exatamente como fez no vídeo de sucesso na internet.
“Naquele dia, veio vindo um poeirão vermelho. Parecia que a gente estava sendo abraçada pelo inferno.
Sobreviveu, mas perdeu o bebê no caminho do hospital. Daria um filme de terror, mas pensando bem, acho que ninguém iria querer assistir”, comenta Keila que, durante três dias, se assustava com qualquer barulho, até o de uma descarga no banheiro. Segundo ela, o estrondo da lama era mais alto do que o de cinco helicópteros juntos, que de fato chegaram meia hora depois do rompimento da barragem, com bombeiros, polícia, jornalistas. Keila diz que concorda em se mudar para uma casa nova, desde que não seja perto de barrancos, na beira de rio e menos ainda, próximo a barragens.
“Sabe aquele sereninho que sai das cataratas? Era parecido com aquilo, só que era uma névoa de lama. Aquele trem veio descendo e lambendo as casas todas. Foi coisa de cinco minutos. Estava no chuveiro quando minha filha gritou: ‘Mãe, corre que a barragem arrebentou!’. Peguei a toalha e pedi ajuda ao meu neto para socorrer a dona Doca, que estava dormindo nos fundos. Ele a carregou no colo. Via todo mundo com volta correndo e gritando”, recorda dona Maria.
Do alto do morro, ela ainda viu uma cena difícil de esquecer, quando a sobrinha Sônia, de 36 anos, tentava pular a janela da própria casa, de muro alto: “Ela se salvou por pouco. Quando pôs a mão no muro, o muro quebrou com a lama e ela foi sendo empurrada uns 300 metros pela onda, segurando um sobrinho de 9 anos pelas mãos e com o filho de 15 anos puxando-a pelos cabelos. Foi uma sensação horrível”, desabafa Maria, que quando a poeira baixar, quer passar um dia inteiro abraçada com a sobrinha, confortando-a pelo que passou.
Depois de destravar o horror preso na garganta, Maria menciona o caso do homem que perdeu cerca de R$ 60 mil, que ficavam guardados em uma caixa escondida em um cômodo secreto da casa. Era o marido dela, José Barbosa, que poupava para comprar um carro. “Era o sonho dele, sabe? Mas eu fico pensando: de que adiantou passar a vida inteira com medo de ser roubado e a porta do quarto sempre trancada a chave? Foi tudo embora...”
.