Jornal Estado de Minas

Retomada do equilíbrio do ecossistema no Rio Doce levará anos ou até décadas

Garças deram lugar a bandos de urubus, próximos a peixes mortos - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press

As imagens de peixes agonizando ou mortos, cobertos pela lama às margens do Rio Doce, são apenas uma pequena parte visível do que está sendo considerado a maior tragédia ambiental do Brasil. Especialistas ouvidos pelo Estado de Minas são unânimes em dizer que os danos são incalculáveis nos ecossistemas ao longo da bacia hidrográfica que se origina na Serra da Mantiqueira e deságua no mar em Regência Augusta, distrito do município de Linhares, no Espírito Santo. A extensão da tragédia aos poucos emerge da lama, mostrando que o impacto na ictiofauna (relativa aos peixes) junta-se aos danos ao solo, às matas ciliares, aos remansos, a terraços dos rios e estende-se aos modos de vida das comunidades ribeirinhas.


Os ecossistemas foram de tal forma afetados que serão necessários anos, talvez décadas, para que retomem o equilíbrio. “É um prejuízo grande tanto para o solo quanto para recursos hídricos e a biodiversidade”, atesta o professor de agroecologia e botânica Reinaldo Duque-Brasil, do câmpus avançado de Governador Valadares da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).


Lama formou novos barrancos e mudou a configuração do leito do Rio Doce - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A PressEm alguns casos, não será possível recuperar o hábitat de espécies como o surubim-do-doce: cavas que foram esculpidas pela correnteza durante centenas de anos. Considerado símbolo do rio, o Steindachneridion doceanum foi extinto na calha com outras espécies (veja arte). Já ameaçado, de acordo com mapa de animais em extinção divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ele corre ainda mais risco de desaparecer para sempre. Ainda pode ser encontrado em afluentes, como o Rio Santo Antônio, mas a morte dos que estavam no leito do Doce reduz a variedade genética da espécie. É o que os especialistas chamam de gargalo genético.

O peixe já foi o maior símbolo da vida do rio. Há registros históricos que mostram a abundância, quando eram encontrados com até 28 quilos. Ao longo do tempo, pescadores e ribeirinhos tiveram de lidar com a escassez da espécie, que passou a habitar apenas trechos de forte correnteza e fundos rochosos.


Além dos peixes, outros animais e espécies visíveis da flora, a lama mata a microbiota, conjunto de micro-organismos responsável pela renovação do solo por meio da reciclagem de nutrientes. No curso do rio, não é possível ver nada pela água turva. Não passa luz e não há a produção de oxigênio. Se os peixes não fossem mortos pelo barro que toma conta das delicadas brânquias, com pouco tempo morreriam pela falta de oxigenação. A lama cimenta o leito, as matas ciliares e remanso.

Com isso, todo o rico ecossistema do Rio Doce, que intrigou a família real quando chegou ao Brasil, por volta de 1808, perdeu seu esplendor. Não se pode encontrar insetos, aves, anfíbios, peixes e diversidade de musgos e flores nas áreas afetadas. Só barro.


De importância vital para a economia da Região Sudeste, o Rio Doce foi protegido como um tesouro pela Coroa Portuguesa no início do século 19, para impedir que piratas chegassem ao coração do país percorrendo o leito. Cuidado que se perdeu ao longo dos séculos e resultou em uma tragédia que desaguará no mar, comprometendo outros ecossistemas, como os manguezais do Espírito Santo. A extensão da catástrofe deverá ser conhecida por meio de um relatório técnico que está sendo elaborado por equipe multidisciplinar formada pelo Ministério Público, em níveis federal e estadual, com participação de professores da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Outro parecer será apresentado pelo Giaia (Grupo Independente para Análise de Impacto Ambiental).


A ressurreição do Doce depende da preservação de seus afluentes, como o Santo Antônio, que nasce em Conceição do Mato Dentro e atravessa 29 municípios. “Cerca de 90% das espécies do Doce são encontradas no Santo Antônio”, afirmou a vice-presidente da Associação de Defesa e Desenvolvimento de Ferros (Abbas), Tereza Cristina Almeida Silveira. Ela ressalta que propostas para instalação de empreendimentos econômicos no rio, como hidrelétricas e áreas para mineração, precisam ser reconsideradas.

“O rio adquiriu importância ainda maior depois desse crime ambiental.” A importância do Rio Santo Antônio para a Bacia do Doce foi defendida na tese de Fábio Vieira, em 2006, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

COMUNIDADES RIBEIRINHAS A força do tsunami de lama que devastou Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, bem como outros distritos de Mariana e da cidade vizinha de Barra Longa, seguiu ao longo dos 853 quilômetros de extensão do rio destruindo tudo por onde passou. Reinaldo Duque-Brasil reforça que a análise ecológica não pode excluir o ser humano. Se nas cidades aonde a lama chegou primeiro houve perda de vidas e ainda há pessoas desaparecidas, nas cidades mais distantes, a devastação se deu de forma distinta, mas também em grandes proporções.


Ao cobrir os terraços dos rios, locais onde as comunidades ribeirinhas cultivavam lavouras, hortas e outras atividades, a lama sepultou o meio de subsistência de famílias, assim como hábitos culturais que dão identidade a essas comunidades. São quilombolas, pequenos produtores e indígenas que dependem da vitalidade do rio para seguir com as próprias vidas. “No município de Resplendor, os krenak são tribos remanescentes dessa região do Rio Doce. Para eles, o rio é uma entidade sagrada: watu. O modo de vida dessa tribo foi completamente arrasado”, ressalta.

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