Linhares (ES) – O licenciamento ambiental já estava aprovado. O projeto estava autorizado pela Prefeitura de Linhares (ES) e, em poucos dias, as máquinas começariam a trabalhar. A previsão era de que, em algumas semanas, a barra formada pelo assoreamento da foz do Rio Doce, que impedia sua saída natural para o mar, seria desmanchada. “A gente (pescadores) já estava imaginando nossos barcos podendo atravessar novamente a barra para o mar. O encontro do rio com o mar era um ótimo lugar para peixes”, conta o pescador Ademar Paulino Sampaio, de 55 anos. Mas não adiantou vencer os efeitos da seca e da estiagem. Antes que um só saco de areia fosse removido da foz ocorreu o rompimento da barragem da Samarco em Mariana, na Região Central de Minas, e mais de 60 toneladas de rejeitos de minério escoaram para o Rio Doce. “A gente ficou torcendo para o mar segurar a lama. A força do mar abriu outra barra, então eu achava que ia conseguir parar a sujeirada, mas nem o mar conseguiu. Agora não podemos mais pescar nem no rio nem no mar”, disse Ademar.
E o sofrimento do pescador que ficou privado do sustento, das tartarugas ameaçadas de extinção que fazem ninhos na foz e dos peixes marítimos que sobem do mar para o Rio Doce para desovar, vai continuar por muito tempo. Segundo estimativa do Projeto Tamar de proteção das tartarugas marinhas e do Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema) do Espírito Santo, calcula-se que a lama e os rejeitos misturados ao Rio Doce levem ainda cerca de 120 dias para passar pela foz, no distrito de Regência Augusta. “Não tivemos nem tempo de nos preocupar com a foz bloqueada, que vinha sendo nosso maior drama. Com a chegada da lama de mineração, nosso medo era que os animais fossem contaminados e a água não pudesse mais ser usada”, disse Carlos Sangalia, educador ambiental do Projeto Tamar, e vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica da Foz do Rio Doce.
Mas mesmo com a passagem dos sedimentos mais grossos, o convívio com os resíduos do minério de ferro explorado em Mariana ainda deve durar muito tempo. “Grande parte dos sedimentos vai ficar aqui, no fundo do rio ou do mar, e o que isso vai causar a gente não tem ainda como saber. Vai ficar para essa comunidade, que é parte do rio, pessoas que essencialmente sobrevivem da pesca e que estão nessa incerteza. Quando vão poder voltar à vida normal?”, indaga Sangalia.
O prejuízo não foi apenas dos 70 pescadores de Regência Augusta, que, mesmo sem exercer sua profissão ainda conseguiram que a Samarco alugasse seus barcos e os contratasse para monitorar as tentativas de contenção da mancha vermelha na foz. Segundo os donos de pousadas e de restaurantes, o movimemto de turistas e de surfistas diminuiu de forma crítica por causa do enlameamento do mar e do rio. As pousadas estavam praticamente lotadas de reservas para o Natal, o reéveillon e férias de verão. Mas antes mesmo de a lama chegar quase tudo foi cancelado, afirmam os empresários.
As ameaças ao Rio Doce e à vida marinha que depende de sua foz, antes do rompimento da barragem, eram o assoreamento, que chegou a bloquear a foz, e a poluição, que inviabilizava a captação da água sem tratamento. “Essa área da foz é extremamente importante para a desova da tartaruga-cabeçuda e da tartaruga-gigante. Não sabemos se as tartarugas vão ser afetadas pela lama e seus componentes, se vão desovar nessa área, qual será o comportamento dos filhotes. Nunca uma tragédia dessas proporções tinha ocorrido, por isso monitoramos e nos preparamos para agir. Mas, com certeza, os impactos são mais devastadores do que a poluição”, afirma Antônio de Pádua Almeida, chefe da Reserva de Comboios do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Berçário ameaçado A mancha vermelha de resíduos de mineração que vazaram da barragem da Samarco em Mariana, na Região Central de Minas, já engoliu o estuário de reprodução das tartarugas marinhas em Regência Augusta, sujou a Praia de Barra Seca – ambos distritos de Linhares (ES) –, e se aproxima das terras indígenas de Caieiras Velhas, que abriga a quinta maior extensão contínua de mangue da América. O ecossistema é berçário de peixes, crustáceos e pássaros, alguns ameaçados de extinção, como o carangueijo guaiamum, e por isso a preocupação é grande.
Também os índios que vivem na reserva estão apreensivos com a aproximação da mancha, que já se encontra a 20 quilômetros do local. “Todos nós vivemos da extração de mariscos que podem ser contaminados. O mercado deixa de comprar. Atualmente, não está sendo feito nada. A Vale e a Samarco chegaram a nos dizer que a mancha não chegaria até a aldeia, mas a gente sabe que vai chegar por conta da corrente marinha”, disse Edno Correia Pajeú, liderança da aldeia tupiniquin de Caieras Velhas.
Na aldeia de Comboios, a menos de 10 quilômetros da mancha, a pesca artesanal de arraias, baiacus e outros espécies já parou em parte do território. “Sofremos todo ano com enchentes. A água que vem de Minas pelo Rio Doce destrói lavoura, casas, estradas e tenho certeza de que vai trazer a lama para dentro da nossa comunidade, trazer doenças”, disse Luiz Mateus Barbosa, de 43.