Jornal Estado de Minas

Tragédia de Mariana reacende memória do estouro da represa da Pampulha

- Foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EMPassagens da vida, misturadas à história da capital, vieram à tona da memória de muitos belo-horizontinos desde o rompimento da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, na Região Central. Mesmo a mais de 100 de quilômetros de distância dos distritos e subdistritos atingidos pela lama de rejeitos de minério, o aposentado José Waldivino de Lima, de 70 anos, residente no Bairro Suzana, sentiu na pele e no coração o horror de uma calamidade, ao se lembrar do “estouro” da represa da Pampulha em 20 de abril de 1954. “Foi um sufoco. Desceu aquela água toda e havia um funcionário, o inspetor Pimentel, avisando, num jipe, pelas ruas, que todas as pessoas deveriam sair de suas casas e procurar um lugar seguro”.

Na época, o Bairro Suzana, na Região da Pampulha, não era bairro nem tinha esse nome. “Era uma comunidade de, no máximo, 20 a 30 moradores, nada mais”, afirma o aposentado, mais conhecido como Calu. “Felizmente, a água não chegou à nossa casa, pois seguimos a orientação do inspetor Pimentel e saímos logo. Essa história de Mariana deixou todo mundo triste, houve mortes e destruição do meio ambiente num tempo muito curto. Já a barragem da Pampulha foi arrebentando aos poucos”, conta Calu.

O rompimento da estrutura de 20 metros de altura, inaugurada em 1938 para abastecimento de água em BH, na primeira administração (1935 a 1938) do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1897-1960), despertou a atenção da capital, então com 500 mil habitantes.

“Fomos lá para olhar a fenda na represa, a água descia em direção ao aeroporto”, conta Calu. Quem também se lembra dessa comoção pública é o comerciante Raimundo Silva, o Vadico, de 85, viúvo, pai de quatro filhos, morador do Suzana desde 1966.

"Felizmente, a água não chegou à nossa casa, pois seguimos a orientação do inspetor Pimentel e saímos logo. (...)A barragem da Pampulha foi arrebentando aos poucos", José Waldivino de Lima, de 70 anos, aposentado - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press“A represa começou a arrebentar de manhã cedo e terminou à tarde. Antes de tudo acontecer, as autoridades anunciaram pelo rádio para as pessoas evacuarem a área. Naquele tempo, havia pouca gente morando nesses lados da cidade; na verdade, era puro mato. Sorte não ter tido mortes, mas o campo de aviação (aeroporto da Pampulha) foi inundado. Todo mundo comentava... uma situação assim é sempre dolorosa”, afirma Vadico.
Com boa memória e citando datas com desenvoltura, o comerciante, que antes morava onde hoje é o Bairro Ipiranga, na Região Nordeste, diz que as pessoas se referiam à região como roça. “Mas eu respondia simplesmente: um dia essa roça vai crescer.”

SEM AS LETRAS Antes do rompimento da barragem, há 61 anos, os passageiros que sobrevoavam a lagoa partindo do aeroporto podiam ler as palavras Pampulha e Belo Horizonte gravadas em letras gigantes na estrutura de cimento, alvenaria e terra – a fenda, conforme mostram as fotos aéreas feitas pela equipe da extinta revista O Cruzeiro, atingiu exatamente as sílabas “zon” e “pulha”. O diretor do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH), historiador Yuri Mello Mesquita, explica que o vazamento na represa, resultado de uma fissura, foi detectado em 16 de abril daquele ano. “Na época, a cidade, com cerca de 500 mil habitantes, registrava uma série de problemas estruturais, entre eles ruas com muitos buracos, lixo sem recolher, enchentes e falta de água e de escolas.”

Nesse cenário, em que ainda não havia a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), a prefeitura era a responsável pelo fornecimento de água e tratamento do esgoto urbano. Então, o prefeito Américo Renné Giannetti e o governador do estado, Juscelino Kubitschek, se uniram para encontrar uma solução: a primeira foi abrir duas comportas do reservatório, a fim de esvaziá-lo, e tentar soldar a fissura. “O fato criou uma comoção na cidade, e, desde o dia 16, as autoridades foram a público passar uma mensagem de tranquilidade, dizendo à população que a barragem não se romperia”, afirma Yuri, autor da dissertação de mestrado Jardim de asfalto – Água, meio ambiente e canalização e as políticas públicas de saneamento básico em Belo Horizonte (1948-1973).

O historiador conta que, ao mesmo tempo, começaram as campanhas de vacinação dos moradores das áreas atingidas pela água da Pampulha, que afetou a região do Vale do Ribeirão do Onça, chegou ao Rio das Velhas, passou por Santa Luzia, na região metropolitana, e seguiu em direção ao Rio São Francisco. “Havia o temor de epidemia de doenças de veiculação hídrica. BH tinha muitas epidemias de esquistossomose e gastroenterite”, acrescenta Yuri.
O Estado de Minas documentou todas as etapas e estampou a manchete: “Fendeu-se a represa da Pampulha na manhã de sexta-feira.” O texto dizia: “A torrente violenta causou estragos de monta, destruiu obras, arrasou casas e colocou muitas famílias ao desabrigo.”

CAUSAS E RESPONSABILIDADES Bem além da lagoa, considerada então a “menina dos olhos dos belo-horizontinos”, as áreas atingidas haviam se transformado num “imenso lodaçal de onde emanam fétidos odores”, segundo a edição do Diário da Tarde de 22 de abril de 1954. Antes de seguir para a solenidade do Dia de Tiradentes (21 de Abril), em Ouro Preto, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) visitou a capital mineira e ofereceu recursos: “Belo Horizonte precisa e merece o apoio do governo da União”, afirmou ao lado de JK e do prefeito.

As explicações do engenheiro construtor Ajax Rabelo não diferem muito dos esclarecimentos de hoje. Ele disse: “O acidente é quase comum em barragens de terra, como é o caso da Pampulha. A barragem é muito grande, feita sobre aterro e a pressão da água, enorme, pois na Lagoa da Pampulha estão 18 milhões de metros cúbicos de água. Daí, pode-se imaginar a pressão (…). Houve um movimento maciço da barragem que trincou o concreto, fato comum em barragens de terra”.

Passado o “sufoco”, conforme descreveu Calu, foi convocado para a empreitada de reconstrução o engenheiro Luiz Vieira, vindo do Rio de Janeiro e colaborador da obra em 1937. Segundo Yuri, não se chegou a um consenso sobre causas e responsabilidades do rompimento. Ocorreu, na sequência, um jogo de empurra, com acusações mútuas das autoridades municipais e estaduais, além de culpa ao prefeito anterior, responsável por erguer a barragem. Conforme os jornais da época, não houve registro de danos ao patrimônio arquitetônico moderno projetado, na década anterior, por Oscar Niemeyer (1907-2012) – Igreja de São Francisco, Casa do Baile, Cassino, atual Museu de Arte da Pampulha, e outros monumentos que maravilham os olhos do mundo.

"Novo e pitoresco bairro"

A construção da barragem da Pampulha se deu bem antes da implantação do conjunto arquitetônico moderno projetado por Oscar Niemeyer. Ao erguer a estrutura para captação de água, inaugurada em 1938, o então prefeito Otacílio Negrão de Lima já vislumbrava a possibilidade de a região se tornar “um novo e pitoresco bairro”, conforme os relatórios da sua administração.
Hoje, o episódio do rompimento da barragem, em 1954, é uma página virada na história da Pampulha, que atrai os olhos do mundo para a importância arquitetônica e pretende se tornar patrimônio cultural da humanidade, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). O resultado será divulgado em junho, em Istambul, na Turquia.

CRONOLOGIA

Pampulha em três décadas

1938
- Inauguração da barragem da Pampulha. O objetivo inicial é fornecimento de água à população

Década de 1940 - Implantação do conjunto arquitetônico moderno projetado por Oscar Niemeyer

1954 - Em 16 de abril, fenda na estrutura leva autoridades a emitir alerta para população abandonar casas

1954- Em 20 de abril, barragem arrebenta, inunda o aeroporto e atinge toda a região do vale do Ribeirão do Onça .