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Estado de Minas

Tragédia de Mariana reacende memória do estouro da represa da Pampulha

Rompimento da Barragem do Fundão que deixou rastro destruição faz moradores de BH lembrarem de acidente histórico na capital


postado em 14/12/2015 06:00 / atualizado em 14/12/2015 07:51

A fenda aberta na barragem levou parte das palavras gravadas no cimento(foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM)
A fenda aberta na barragem levou parte das palavras gravadas no cimento (foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM)
Passagens da vida, misturadas à história da capital, vieram à tona da memória de muitos belo-horizontinos desde o rompimento da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, na Região Central. Mesmo a mais de 100 de quilômetros de distância dos distritos e subdistritos atingidos pela lama de rejeitos de minério, o aposentado José Waldivino de Lima, de 70 anos, residente no Bairro Suzana, sentiu na pele e no coração o horror de uma calamidade, ao se lembrar do “estouro” da represa da Pampulha em 20 de abril de 1954. “Foi um sufoco. Desceu aquela água toda e havia um funcionário, o inspetor Pimentel, avisando, num jipe, pelas ruas, que todas as pessoas deveriam sair de suas casas e procurar um lugar seguro”.

Na época, o Bairro Suzana, na Região da Pampulha, não era bairro nem tinha esse nome. “Era uma comunidade de, no máximo, 20 a 30 moradores, nada mais”, afirma o aposentado, mais conhecido como Calu. “Felizmente, a água não chegou à nossa casa, pois seguimos a orientação do inspetor Pimentel e saímos logo. Essa história de Mariana deixou todo mundo triste, houve mortes e destruição do meio ambiente num tempo muito curto. Já a barragem da Pampulha foi arrebentando aos poucos”, conta Calu.

O rompimento da estrutura de 20 metros de altura, inaugurada em 1938 para abastecimento de água em BH, na primeira administração (1935 a 1938) do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1897-1960), despertou a atenção da capital, então com 500 mil habitantes. “Fomos lá para olhar a fenda na represa, a água descia em direção ao aeroporto”, conta Calu. Quem também se lembra dessa comoção pública é o comerciante Raimundo Silva, o Vadico, de 85, viúvo, pai de quatro filhos, morador do Suzana desde 1966.

(foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM)
(foto: Eugênio Silva/O Cruzeiro/EM)
“A represa começou a arrebentar de manhã cedo e terminou à tarde. Antes de tudo acontecer, as autoridades anunciaram pelo rádio para as pessoas evacuarem a área. Naquele tempo, havia pouca gente morando nesses lados da cidade; na verdade, era puro mato. Sorte não ter tido mortes, mas o campo de aviação (aeroporto da Pampulha) foi inundado. Todo mundo comentava... uma situação assim é sempre dolorosa”, afirma Vadico. Com boa memória e citando datas com desenvoltura, o comerciante, que antes morava onde hoje é o Bairro Ipiranga, na Região Nordeste, diz que as pessoas se referiam à região como roça. “Mas eu respondia simplesmente: um dia essa roça vai crescer.”

SEM AS LETRAS Antes do rompimento da barragem, há 61 anos, os passageiros que sobrevoavam a lagoa partindo do aeroporto podiam ler as palavras Pampulha e Belo Horizonte gravadas em letras gigantes na estrutura de cimento, alvenaria e terra – a fenda, conforme mostram as fotos aéreas feitas pela equipe da extinta revista O Cruzeiro, atingiu exatamente as sílabas “zon” e “pulha”. O diretor do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH), historiador Yuri Mello Mesquita, explica que o vazamento na represa, resultado de uma fissura, foi detectado em 16 de abril daquele ano. “Na época, a cidade, com cerca de 500 mil habitantes, registrava uma série de problemas estruturais, entre eles ruas com muitos buracos, lixo sem recolher, enchentes e falta de água e de escolas.”

Nesse cenário, em que ainda não havia a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), a prefeitura era a responsável pelo fornecimento de água e tratamento do esgoto urbano. Então, o prefeito Américo Renné Giannetti e o governador do estado, Juscelino Kubitschek, se uniram para encontrar uma solução: a primeira foi abrir duas comportas do reservatório, a fim de esvaziá-lo, e tentar soldar a fissura. “O fato criou uma comoção na cidade, e, desde o dia 16, as autoridades foram a público passar uma mensagem de tranquilidade, dizendo à população que a barragem não se romperia”, afirma Yuri, autor da dissertação de mestrado Jardim de asfalto – Água, meio ambiente e canalização e as políticas públicas de saneamento básico em Belo Horizonte (1948-1973).

O historiador conta que, ao mesmo tempo, começaram as campanhas de vacinação dos moradores das áreas atingidas pela água da Pampulha, que afetou a região do Vale do Ribeirão do Onça, chegou ao Rio das Velhas, passou por Santa Luzia, na região metropolitana, e seguiu em direção ao Rio São Francisco. “Havia o temor de epidemia de doenças de veiculação hídrica. BH tinha muitas epidemias de esquistossomose e gastroenterite”, acrescenta Yuri. O Estado de Minas documentou todas as etapas e estampou a manchete: “Fendeu-se a represa da Pampulha na manhã de sexta-feira.” O texto dizia: “A torrente violenta causou estragos de monta, destruiu obras, arrasou casas e colocou muitas famílias ao desabrigo.”

"Felizmente, a água não chegou à nossa casa, pois seguimos a orientação do inspetor Pimentel e saímos logo. (...)A barragem da Pampulha foi arrebentando aos poucos", José Waldivino de Lima, de 70 anos, aposentado (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
CAUSAS E RESPONSABILIDADES Bem além da lagoa, considerada então a “menina dos olhos dos belo-horizontinos”, as áreas atingidas haviam se transformado num “imenso lodaçal de onde emanam fétidos odores”, segundo a edição do Diário da Tarde de 22 de abril de 1954. Antes de seguir para a solenidade do Dia de Tiradentes (21 de Abril), em Ouro Preto, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) visitou a capital mineira e ofereceu recursos: “Belo Horizonte precisa e merece o apoio do governo da União”, afirmou ao lado de JK e do prefeito.

As explicações do engenheiro construtor Ajax Rabelo não diferem muito dos esclarecimentos de hoje. Ele disse: “O acidente é quase comum em barragens de terra, como é o caso da Pampulha. A barragem é muito grande, feita sobre aterro e a pressão da água, enorme, pois na Lagoa da Pampulha estão 18 milhões de metros cúbicos de água. Daí, pode-se imaginar a pressão (…). Houve um movimento maciço da barragem que trincou o concreto, fato comum em barragens de terra”.

Passado o “sufoco”, conforme descreveu Calu, foi convocado para a empreitada de reconstrução o engenheiro Luiz Vieira, vindo do Rio de Janeiro e colaborador da obra em 1937. Segundo Yuri, não se chegou a um consenso sobre causas e responsabilidades do rompimento. Ocorreu, na sequência, um jogo de empurra, com acusações mútuas das autoridades municipais e estaduais, além de culpa ao prefeito anterior, responsável por erguer a barragem. Conforme os jornais da época, não houve registro de danos ao patrimônio arquitetônico moderno projetado, na década anterior, por Oscar Niemeyer (1907-2012) – Igreja de São Francisco, Casa do Baile, Cassino, atual Museu de Arte da Pampulha, e outros monumentos que maravilham os olhos do mundo.

"Novo e pitoresco bairro"

A construção da barragem da Pampulha se deu bem antes da implantação do conjunto arquitetônico moderno projetado por Oscar Niemeyer. Ao erguer a estrutura para captação de água, inaugurada em 1938, o então prefeito Otacílio Negrão de Lima já vislumbrava a possibilidade de a região se tornar “um novo e pitoresco bairro”, conforme os relatórios da sua administração. Hoje, o episódio do rompimento da barragem, em 1954, é uma página virada na história da Pampulha, que atrai os olhos do mundo para a importância arquitetônica e pretende se tornar patrimônio cultural da humanidade, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). O resultado será divulgado em junho, em Istambul, na Turquia.

CRONOLOGIA

Pampulha em três décadas

1938
- Inauguração da barragem da Pampulha. O objetivo inicial é fornecimento de água à população

Década de 1940 - Implantação do conjunto arquitetônico moderno projetado por Oscar Niemeyer

1954 - Em 16 de abril, fenda na estrutura leva autoridades a emitir alerta para população abandonar casas

1954- Em 20 de abril, barragem arrebenta, inunda o aeroporto e atinge toda a região do vale do Ribeirão do Onça


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