No momento em que o país enfrenta um surto de microcefalia, o temor das gestantes avança na mesma proporção que o número de casos da malformação congênita relacionados ao zika vírus, transmitido pelo Aedes aegypti. Segundo o Ministério da Saúde, já são 3.893 casos em investigação no Brasil. Em Minas, apenas em uma semana, mais 15 ocorrências suspeitas de zika em grávidas e dois casos de microcefalia em bebês estão sendo investigados. Com isso, muitas mulheres têm adiado a maternidade. A microcefalia, normalmente diagnosticada no início da vida, é resultado de o cérebro não crescer o suficiente durante a gestação ou após o nascimento. Crianças com microcefalia têm problemas de desenvolvimento e dependem de reabilitação para conseguir avanços. Como vivem e o que podem esperar do futuro? O zika vírus é apenas mais uma das causas da doença, que também pode ser desencadeada por uma série de variáveis genéticas ou ambientais – como malformações do sistema nervoso central e diminuição do oxigênio para o cérebro fetal – e alguns problemas durante a gravidez, como exposição a drogas, álcool e certos produtos químicos, desnutrição grave, fenilcetonúria, toxoplasmose congênita e infecção congênita por citomegalovírus. Algumas doenças genéticas, entre elas, a síndrome de Down, também podem provocar a microcefalia. Ana Luiza, de 4 anos, foi diagnosticada aos cinco meses de idade. Sua mãe, a estudante de fisioterapia Clarisse Fraga Lignani, de 33, teve toxoplasmose durante a gestação, uma possível explicação para o problema. Em entrevista ao Estado de Minas, Clarisse fala dos desafios e das delícias de criar uma criança especial.
DESCONFIANÇA
Ana Luisa nasceu com 38 semanas. Foi uma cesariana, mas só porque minha pressão e glicose estavam bem altas. Apesar de ter tido toxoplasmose durante a gravidez, tinha feito todo o tratamento e os exames mostravam que a Analu (um dos apelidos carinhosos da menina) estava se desenvolvendo normalmente. Não havia nada anormal. Mas quando ela nasceu, notei coisas diferentes. Ela teve muita dificuldade para começar a mamar. Demorou 15 dias para pegar o peito direito.
PRIMEIROS SINAIS
Apesar da minha falta de experiência, notava que meu bebê tinha algumas particularidades. Achava a cabeça da Ana muito irregular, mas ela nasceu com o perímetro encefálico normal, de 35cm, então os pediatras não desconfiavam de nada. Ana Luíza também não fixava o olhar e, quando tinha três meses, observamos que ela não prestava atenção em nada.
DIAGNÓSTICO
Quando a Ana Luiza completou cinco meses, a médica quis investigar se a toxoplasmose tinha dado algum comprometimento. A investigação foi conclusiva. Durante um ultrassom de crânio, o médico percebeu que a fontanela (também conhecida como moleira) estava quase fechada, o que geralmente ocorre aos 2 anos de idade. Ele nem conseguiu ver o cérebro direito e encaminhou o caso para um neurologista. Neste mesmo dia, a Ana teve uma convulsão horrorosa, a primeira delas. Nunca tinha visto um surto e fiquei desesperada. Pensei que minha filha fosse morrer. Quando ela se recuperou da crise e terminamos os exames, o especialista confirmou que os ossinhos estavam fechando precocemente. Foi nesse momento que tivemos o diagnóstico de microcefalia. Com seis meses, a cabeça da Ana Luiza estava crescendo, mas abaixo do esperado para a idade. Ela já tinha a cabeça 4cm menor.
REAÇÃO
Meu primeiro contato com a doença foi de muita dúvida. O nome, microcefalia, não saia dos meus pensamentos. Os médicos nunca me explicaram direito o que era, quais seriam as consequências. Assim que soube do diagnóstico fui pesquisar e dei de cara com casos esdrúxulos, de crianças vegetando em suas camas. No hospital chegaram a me dizer que esse seria o futuro dela. Nesse momento, me sentia como um barco à deriva. Não sabia o que fazer com minha filha. Não tinha ideia de como lidar com ela em uma convulsão. Hoje, sei que os médicos me omitiram muitas coisas, talvez para não me assustar. Sentia que não tinha informação e preparo para lidar com aquilo.
CUSTOS
Tudo é muito caro. Teve época da Ana tomar um remédio importado que custava R$ 600. A escola integral e especial também demanda muito dinheiro. Ela depende de fraldas, mas o governo só dá o desconto de 50% para idosos.
EDUCAÇÃO
A escola especial me ajudou muito. Minha filha não pode ficar sozinha, ela precisa de uma atenção diferenciada. Na escola onde está em tempo integral, há outras crianças como ela. Elas pintam, brincam, as atividades consideram as dificuldades que elas apresentam. E ver outras mães como eu dá certo conforto. Percebo que não sou a única que enfrenta essa realidade. Sinto que minha filha não é a única com deficiência. A escola especial desperta uma parceria entre as mães. Uma entende a outra, uma ensina a outra.
ACEITAÇÃO
Não há tempo para depressão. Hoje me acostumei à situação, mas no começo fiquei muito triste. Tive muito desânimo logo que tivemos o diagnóstico, porque esperava que depois das convulsões ela melhoraria, mas não percebia evolução. A gente quer ver resultado. O problema da Ana Luiza mudou não só o meu ritmo, mas também minha compreensão da vida. Nem tudo é do jeito que a gente quer. Às vezes, precisamos ver os milagres de outra forma. Milagre não é ela levantar e sair andando. Milagre é o sorriso, o beijo mordido. Milagre é ver ela tomar um sorvete, comer a casquinha e ficar feliz. Depois que aceitamos, passamos a comemorar pequenas conquistas.
FUTURO
Diagnóstico não é um destino, mas também preciso aceitar o que é. Os médicos falam muito pouco sobre o futuro. Minha mãe acha que é para não assustar ou tirar esperanças. Talvez ela realmente não ande ou fale.
CONVULSÕES E TRATAMENTO
Pouco depois do diagnóstico, quando tinha 7 meses, a Ana voltou a ter crises convulsivas. O médico dizia que quando esses episódios parassem ela teria chances de começar a andar ou a falar. Na minha cabeça eu achei que isso ia acontecer, e ficava na expectativa das convulsões passarem. Mas no dia a dia fui percebendo a dificuldade. Ana tem muitas convulsões até hoje. Ela tem epilepsia de difícil controle e toma cinco medicações diferentes. Ao todo são 15 comprimidos por dia.
PRECONCEITO
Há muito preconceito com as crianças especiais. Algumas pessoas têm medo de ‘pegar’, ficam com receio de chegar perto. Fica parecendo que estão de frente para um ET. Gosto quando as pessoas conversam com a Ana, fazem um carinho. Ela não morde. Mas as pessoas só veem a doença, a cadeira de rodas, a órtese. Esquecem que por trás daquele corpo tem uma criança que gosta de doce, que acha graça na Peppa, que fica feliz com um brinquedo novo.
FORÇA
A situação da Ana Luiza me fez abrir mão da vida social, dos passeios, de amizades e de relacionamentos. Hoje, não é qualquer pessoa que entra na minha vida. Isso também é uma questão de sobrevivência. Preciso lutar pela vida de alguém que não pode se defender. Penso na Ana Luiza em primeiro lugar e é nela que encontro forças para seguir. É o amor que sinto por ela que me fortalece. Mudei muito com essa experiência. Era uma mulher dócil, aceitava tudo. Fiquei calejada. Aprendi a lutar. Sou intolerante com as pessoas que reclamam de qualquer coisa. Às vezes, acho que chego a ser grossa com quem lamenta à toa.
MENSAGEM ÀS MÃES
Ter um filho com microcefalia é, sim, uma experiência dolorosa. No início é muito difícil, parece que o mundo caiu. Entendo a angústia dessas mães com filhos com suspeita de microcefalia por causa do zika vírus. Mas quero dizer a elas que elas têm um anjo em suas vidas. Essa é a missão que receberam. Elas serão felizes ao descobrir o verdadeiro sentido da vida. A Ana Luiza não anda, não fala, mas me dá tantas alegrias. O mais importante é aceitar o filho, do jeito que ele é. E fazer o melhor por eles.