TRÊS MESES DA TRAGÉDIA DE MARIANA

Moradores de Governador Valadares ainda desconfiam da qualidade da água do Rio Doce

Apesar de laudos aprovando o abastecimento de Valadares, população ainda não tem confiança para consumir água que foi contaminada pela lama da Samarco. Moradores e comerciantes cozinham e até lavam pratos e panelas com água mineral

Alessandra Alves
Aspecto barrento do leito do rio doce e medo da contaminação pelos rejeitos liberados por desastre de Mariana provocam desconfiança entre habitantes de Governador Valadares - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press

Governador Valadares -
Uma cidade inundada pela desconfiança. Três meses após o rompimento da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, moradores de Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, ainda se recusam a beber a água tratada pelo Serviço de Abastecimento de Água e Esgoto (Saae) da cidade. Apesar de em novembro do ano passado laudo do Ministério Público de Minas Gerais atestar que o tratamento conseguiu eliminar os metais pesados presentes na água bruta captada no rio, a população segue incrédula. Em lanchonetes e restaurantes da cidade, alimentos continuam sendo preparados com água mineral; os refrescos, feitos com leite ou suco de laranja. Nas casas, filtros foram abandonados. O que se vê em cozinhas e quintais das residências e em estabelecimentos comerciais são de estoques de água mineral.


A aposentada Maria Conceição Silva, de 79 anos, é uma das que não usam a água do Saae nem para lavar vasilhas. Recém-operada, ela tem medo de que usar o abastecimento público possa complicar ainda mais a saúde, fragilizada após uma angioplastia. “Beber, eu não bebo de jeito nenhum.

Ninguém toma dessa água. Eu não lavo a cabeça, não tomo banho, não faço comida. Para lavar vasilhas, eu ensaboo usando a água normal, mas enxáguo com mineral”, explica. Moradora da Ilha dos Araújos, a aposentada diz que, além de o trabalho doméstico ter aumentado muito com a nova rotina, o dinheiro da aposentadoria quase não dá para cobrir os novos gastos.


Quem faz as contas é o marido dela, Aminadabe Modesto da Silva, de 82 anos, também aposentado. Ele conta que na casa deles são usados quatro galões de 20 litros de água mineral por semana, no mínimo. “São pelo menos R$ 36 por semana. Para quem ganha um salário-mínimo, como fica?”, pergunta. O casal gasta cerca de R$ 144 por mês, 16,36% do salário, apenas para cobrir os gastos com a água mineral. “Fica muito caro pra gente, uma casa com uma família grande, gastando isso tudo. Mas eu não tenho coragem de beber dessa água. Se antes já era poluída, agora piorou”, desabafa a aposentada.

Gerente de um restaurante no Centro da cidade, Jolm Piter diz que a fase mais complicada foi após o rompimento da barragem, quando Governador Valadares ficou sem água por pelo menos cinco dias, e a casa chegou a usar até 10 galões de 20 litros por dia. Com o retorno do abastecimento, porém, a despesa apenas diminuiu. “Hoje gastamos de cinco a seis galões por dia, porque usamos para cozinhar e também fornecemos aos funcionários”, conta.

Apesar de os custos terem subido consideravelmente, ele diz que o restaurante optou por não repassar o aumento para o cliente. “Temos uma clientela fiel, gente que deixou de cozinhar em casa, por exemplo, para vir ao restaurante, porque sabe como o alimento está sendo preparado”, explica.

Segundo o gerente, os próprios clientes cobram o uso da água mineral. Logo após a tragédia, foram providenciadas placas para avisar que a casa não usa a água do Saae na cozinha. Para Piter, a desconfiança em relação ao abastecimento do município vai demorar a passar. “Classes mais baixas, agora que não recebem mais doação da Samarco, devem voltar a consumir a água do Saae, mas está todo mundo desconfiado ainda. Acho que quem tem condições de comprar água mineral, vai continuar comprando. Eu mesmo compro”, conclui.

RIBEIRINHOS SEM PERSEPECTIVA Se para a população em geral o maior problema é a desconfiança com a qualidade da água, para os pescadores a tragédia de Mariana representou o fim de uma história. Eduardo Cunha, de 51 anos, é pescador e fabricante de barcos desde os 14. Ou era. Sem perspectiva de continuar trabalhando em qualquer das duas atividades, ele diz que pretende deixar a cidade.
“Não tenho mais o que fazer aqui. Vou sobreviver de quê? Como? O Rio Doce está morto. Que futuro tenho? Aqui não tem peixe nem vai ter pelo menos nos próximos 10 anos”, acredita.

Para o pescador, a Samarco precisa arcar com a responsabilidade do impacto ambiental. Mas ele tem reservas em relação à ação judicial proposta pela União e pelos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, que prevê a criação de um fundo de R$ 20 bilhões para reparar os danos causados pelo desastre. Descrente com a política, teme “sumiço” ou desperdício do dinheiro. Ele lembra ainda que estado, municípios e principalmente o setor industrial poluíram durante anos o Rio Doce sem qualquer responsabilização. “A gente não quer multar a Samarco. O que a gente quer é que ela recupere o rio, o peixe, a qualidade da água, o nosso sustento”, diz. O pescador pontua ainda que o plano de recuperação deveria ser elaborado por biólogos e pessoas que entendam do assunto. “A gente não pode largar isso na mão de político.”

O também pescador José Amaro da Silva, de 56 anos, 28 de pesca, espera um posicionamento da mineradora. Ele diz que se cadastrou no plano de emergência e recebe mensalmente salário-mínimo e uma cesta básica, mas afirma que é pelo menos quatro vezes menos do que conseguia com a profissão. “O peixe acabou, minha vida acabou. Estamos recebendo a ajuda, mas pelo que a gente tirava no rio é muito pouco. Embora, não posso ir. Minha casa está aqui. A obrigação é deles de arcar com a gente. Não foram eles que mataram nossos peixes?”, desabafa.

Maria Conceição conta que usa a torneira só para ensaboar a louça, que é enxaguada com água mineral - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA PressSobre a água tratada pelo Saae, a esposa de Silva, Santa do Rosário Pereira dos Santos, que também é pescadora, diz não ter condições de comprar água mineral e que, desde que a Samarco suspendeu as doações, no último dia 20, a família dela tem tomado a água fornecida pelo município, mas com desconfiança. “Eles falaram que a água está boa, né? Pararam de dar a água mineral para a gente, então paramos de tomar, mas essa água do rio não está boa, não. Está diferente”, diz.

Procurado, o Saae de Governador Valadares informou em nota que desde a tragédia estuda métodos para garantir abastecimento de qualidade aos consumidores, e que monitora o produto de hora em hora. Acrescentou que laboratórios como os da Fundação Ezequiel Dias, da Copasa, do Serviço Geológico do Brasil e da Agência Nacional de Águas atestaram que a água é própria para o consumo humano. A conclusão, segundo a concessionária, foi ratificada por determinação da Justiça Federal, em análises feitas por companhias de saneamento de três diferentes regiões do país. Ainda segundo o texto, a população vem se adaptando à nova realidade e retomando a confiança no consumo da água tratada.

Pescadores se queixam de golpe

Depois da denúncia da revenda de água mineral doada pela Samarco, um novo golpe está sendo aplicado às custas da tragédia em Mariana. Desta vez, por meio do cartão de auxílio financeiro fornecido pela mineradora. O presidente da Colônia dos Pescadores Profissionais do Leste Mineiro, Rodolfo Zulske, afirma que pescadores aposentados por invalidez e até lavadoras de roupas estão requerendo o benefício - de um salário-mínimo e uma cesta básica, acrescida de 20% por dependente de cada família. O auxílio é destinado a pessoas que tiveram atividades profissionais suspensas devido ao rompimento da barragem e consequente contaminação do Rio Doce. Mas, na avaliação dele, o processo de cadastramento é fácil de burlar e por isso muita gente está se beneficiando indevidamente. Em 30 de dezembro fraude semelhante foi denunciada ao Estado de Minas por pescadores de Regência, no estado do Espírito Santo.

.