Dez anos depois do acidente de Arequipa, no Peru, que interrompeu sonhos, marcou histórias e tirou a vida dos estudantes universitários Pedro Coelho d’Ávila Correa, Roberto Tadeu de Melo Barbosa, Taís Palmerston e Thiers Lage Bretas, o pesadelo ainda não acabou. Sobreviventes e familiares das vítimas ainda enfrentam as marcas tragédia, enquanto processos de indenização se arrastam na Justiça. “Foi uma imensa irresponsabilidade com a vida dos meninos. Fiquei sem trabalho, sem filho, sem família, acabou minha vida”, diz Mana Coelho, mãe de Pedro Correa, que tinha 20 anos e era aluno de ciências da computação.
A irresponsabilidade a que se refere a mãe diz respeito ao serviço de transporte prestado pela Soleminas Turismo. A empresa foi contratada pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), com apoio da Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump), para levar de ônibus 42 universitários, 40 deles graduandos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), até Caracas, na Venezuela, para que participassem, de 24 a 29 de janeiro de 2006, da 6ª edição do Fórum Social Mundial (FSM), encontro que reúne movimentos, ONGs e pessoas do mundo inteiro que buscam soluções alternativas para problemas sociais.
Um acidente com o ônibus em 23 de janeiro, quinto dia de viagem, matou os quatro estudantes e deixou 25 feridos, em Arequipa, do sul do Peru, depois de uma sucessão de percalços. Com dois motoristas que se alternavam ao volante, sem parar para descansar, o ônibus tombou à beira de um penhasco. De acordo a perícia, houve problemas no sistema de freios do veículo e faltou conhecimento do local por parte do condutor, que dirigia acima da velocidade adequada para área e não conseguiu fazer uma manobra apropriada.
Uma semana antes da partida, o grupo comemorava a verba de R$ 30 mil dada pela Fump, que permitiria a contratação da empresa de transporte rodoviário. Os estudantes participaram de um sorteio do DCE que definiu quem ingressaria na excursão. O DCE contratou a Soleminas, que ofereceu o menor preço, entre três empresas consultados. A turma chegaria para a abertura do Fórum em cinco dias de viagem, depois de percorrer cerca 6,2 mil quilômetros passando por Goiás e Mato Grosso, onde atravessariam a fronteira do Brasil com a Bolívia, depois cruzariam o Peru, Equador e Colômbia até chegar à Venezuela.
Mana Coelho lembra que foi até o local da saída do ônibus, no câmpus da UFMG, na Pampulha, para deixar um “kit de sobrevivência”, com água e alimentos, para o filho, para o caso de o ônibus ficar atolado, já que chovia muito. “Cheguei a dizer a um dos motoristas: ‘cuide do meu filho porque ele é muito precioso para mim’”. Na madrugada do dia 24, ela foi avisada do acidente pela mãe de um dos estudantes. A primeira informação era de que todos estavam bem. “Até que soube que alguns morreram, aí desesperei e pedi à minha irmã que fosse até a minha casa ficar comigo para esperarmos notícias”, lembra Mana, emocionada. “Foi aí que me ligaram da UFMG pedindo meu endereço. Eu era professora lá na época. Naquele momento, tive certeza de que havia perdido meu filho”, conta Mana, que até hoje não conseguiu receber na Justiça a indenização pela morte de Pedro.
Reparação lenta
Às 5h45 de 25 de janeiro de 2006, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) com 33 estudantes, quatro corpos de alunos da UFMG, e o motorista ferido no acidente de Arequipa foi recebido em Belo Horizonte em clima de comoção. O motorista Cláudio Brito, que escapou sem ferimentos, foi delegado pela Soleminas para fazer o caminho de volta ao Brasil dirigindo o veículo, revezando ao volante com o gerente da empresa. Alguns feridos foram levados para hospitais de BH para passar por exames e outros tiveram que ser internados. Pela gravidade das fraturas que tinham, Lucas Hauck e Juliana Fonseca vieram dois dias depois dos colegas, ele de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) aérea e ela, de remoção aérea, ambos acompanhados de seus então namorados e de um representante da UFMG. Começava aí um novo percurso, para alguns ainda inacabado: a disputa judicial por reparação.
Além de uma fratura na pelve, que deixou sua perna direita dois centímetros menor que a esquerda, Hauck teve edema de rins, luxação em dedo do pé esquerdo, fratura e corte no rosto e uma lesão permanente do globo ocular. Ele diz ter recebido da seguradora os valores gastos apenas com algumas despesas médicas. As sequelas o impediram de prestar concurso para o Corpo de Bombeiros, grande sonho de Lucas que, na época do acidente, era socorrista voluntário. Diante desse quadro, ele resolveu entrar na Justiça contra a Soleminas e a Sulina Seguradora, ao lado de alguns colegas.
Um deles é Vinícius Moura, que recebeu da seguradora os valores referentes às despesas médicas, depois de fazer três cirurgias e enxerto ósseo no braço, mas ainda espera pela punição dos culpados. “A empresa não fez o mínimo de planejamento para essa viagem, foi muita irresponsabilidade e desrespeito com nossas vidas. Não podemos deixar que casos como esse se repitam”, diz.
Em dezembro de 2013, saiu a sentença do processo que Mana Coelho moveu contra a Fundação Mendes Pimentel (Fump), o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG e a Soleminas. A Fump foi inocentada e os outros réus, condenados a indenizar a mãe de Pedro Coelho em R$ 60.171 por danos materiais e morais pela morte do filho. Mas ela ainda tenta receber o valor, que, incluindo despesas com advogados e correção monetária, chega a R$ 97.686.
O processo movido por Moura, Hauck e outros colegas em uma ação coletiva anda lentamente na Justiça, desde 2009. De acordo com o juiz da 4ª Vara Cível, Átila Andrade Castro, que cuida atualmente do caso, a dificuldade de encontrar o dono da Soleminas, Helton Etelvino dos Santos, foi o primeiro empecilho. Quando se apresentou, Santos alegou não ter dinheiro para pagar um advogado. Além disso, foram ajuizados vários processos e não um só envolvendo todas as partes, o que gera transtorno, afirma. A expectativa é de que a sentença saia em breve.
A Soleminas Turismo Ltda não foi encontrada pela reportagem para comentar o caso. Em nota, a Fump lamentou “a tragédia ocorrida com os estudantes” e informou que formalizou junto ao DCE, em 12 de janeiro de 2006, a recomendação de atenção quanto à confiabilidade da empresa contratada, além da garantia de que os seguros de vida e de acidentes pessoais estivessem estabelecidos”.
O hoje promotor de Justiça Rodrigo Marciano escapou por pouco de sofrer o acidente que vitimou os colegas com os quais havia percorrido mais de 4 mil km entre BH e Arequipa, no Peru. Ele desembarou quando o veículo parou para trocar um pneu nos arredores de Arequipa. Só no dia seguinte, dentro de um ônibus, soube do acidente. “Um senhor lia um jornal local ao meu lado. Quando bati o olho, li ‘37 brasileiros feridos e quatro mortos’ e vi a fotografia do ônibus tombado.” Desesperado, pegou um táxi e conseguiu voltar ao Brasil com os colegas no avião da Força Aérea Brasileira (FAB). Hoje, acredita ter sido salvo pelo “privilégio” de uma “intuição divina”.