Nos últimos três anos, o encarregado de almoxarifado Jamil Paranhos, de 61 anos, percebeu que a rua onde mora passou a receber uma carga de água das chuvas que ele compara às corredeiras de um rio. “A chuva toda que cai no alto do Bairro Prado (Oeste de BH) se junta e desce com mais de um metro de altura levando o que encontra pela frente. Tira até carros do lugar. Não tem bueiros ou bocas de lobo, e, por isso, a correnteza se concentra no fim da rua, no muro do metrô, e forma até um redemoinho”, conta. Esse volume d’água injetado na rua estreita gerou medo de carros serem arrastados e até de as cerca de 380 crianças que estudam na Escola Estadual São Bento terem a segurança ameaçada.
O que era receio se tornou um perigo real no fim da tarde de sexta-feira, quando uma chuva de 93 milímetros despejados em uma hora transformou a Rua Diorita num rio de corredeiras velozes capazes de derrubar a pesquisadora Maria Ester Ribeiro, de 59, que se tornou a primeira pessoa a morrer por causa das chuvas em BH desde 2013. A rua, apesar do perigo constante, não consta na Carta de Inundações da capital e não tinha nenhuma das mil placas instaladas em 2009 pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) para alertar sobre locais suscetíveis a enxurradas e alagamentos. Algo que essa tempestade mostrou se repetir em outros bairros que também não estão contemplados pelos estudos, como o Alto Barroca (Oeste) e o Coração Eucarístico (Noroeste), pondo em xeque a cobertura dessa rede de alertas.
Essa situação é fruto de a impermeabilização constante da cidade não ser acompanhada de uma ampliação da rede de drenagem e da construção de piscinões, o que acaba também agravado pelos descartes ilegais de lixo e entulho e a deficiência na limpeza dos dutos de escoamento pluviais. Em novembro, a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) revelou ao Estado de Minas que a capital mineira tinha alterado a dinâmica de pontos inundáveis devido a obras viárias e ao crescimento da própria metrópole. Por esse motivo, a superintendência informou ter requisitado um levantamento das nove regionais sobre locais onde há necessidade de maior manutenção das drenagens e até de intervenções para evitar o acúmulo de água, um estudo que ainda não está pronto e, por isso, não substitui o de 2009.
Na Rua Diorita, por exemplo, onde morreu a pesquisadora, o encarregado de almoxarifado já teve de usar uma prancha de madeira para resgatar da corredeira duas mulheres que ficaram ilhadas no ano passado. “Faltam bocas de lobo na Rua Platina e nas outras mais altas para a água não chegar com tanta força aqui. Depois que encontra o muro do metrô é que começa a ficar mais fundo. Estamos precisando de obras aqui com urgência. Caso contrário, mais gente pode morrer, mais gente vai perder a mãe, como a família da senhora que faleceu aqui na sexta-feira”, disse Jamil.
Naquele mesmo fim de tarde tempestuoso, os bairros mais altos da região tiveram suas ruas mais íngremes convertidas em cachoeiras, segundo as palavras de moradores que enfrentaram a situação. No Alto Barroca, a Rua Conselheiro Saraiva, entre a Avenida Silva Lobo e a Rua Santa Cruz, a concentração de enxurradas que desembocaram do alto do bairro foi tanta que uma residência acabou inundada e os bombeiros precisaram ser chamados. A via não tem placas de alerta contra inundações nem consta na carta da PBH. Na casa atingida não havia ninguém ontem, mas os vizinhos confirmaram que a cada tempestade têm ficado mais apreensivos com o comportamento violento da água. “Moro aqui há 30 anos e nunca tinha acontecido de uma casa ser inundada. Tinha muito na (Avenida) Silva Lobo, mas porque tem um córrego lá. Acho que precisamos de mais bocas de lobo e de um controle sério sobre o lixo que as pessoas jogam no passeio e que vai entrar direto nos poucos bueiros que temos”, reclama a manicure Rosália Xavier, de 58 anos.
No Bairro Coração Eucarístico, outra área gravemente afetada pela última chuva de acordo com os registros dos Bombeiros Militares, a Rua Padre Pedro Evangelista teve vários pontos inundados por onde veículos ficaram impedidos de passar. Essa via também não está no circuito das placas de alerta ou consta na carta de inundações. Do alto da via, que começa na PUC-MG, até a parte mais baixa, que chega na Via Expressa, há apenas quatro bocas de lobo em quatro quarteirões, o que tem sido insuficiente para dar vazão à chuva, principalmente com o aumento do lixo produzido por moradores de rua e frequentadores de bairros próximos, segundo a vizinhança. “Isso passou a ficar assim há pouco mais de dois anos. O bairro é muito antigo e não temos rede pluvial que consiga dar conta das chuvas. Não adianta reclamar na prefeitura, que só vem limpar bueiros, precisamos de obras urgentes. Ou vão esperar que mais alguém morra aqui?”, indagou o comerciário Geraldo Farias, de 72 anos, que mora há 50 no bairro.
PBH nega alterações
Sobre o acidente na Rua Diorita, o gerente de Gestão das Águas Urbanas da Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura de Belo Horizonte, Ricardo Aroeira, afirmou que o caso “vai servir para avaliar para ver se há necessidade de ampliação das redes de microdrenagens (bocas de lobo)”. Ressaltou, no entanto, que em temporais muito fortes, como o de sexta-feira, nem sempre as bocas de lobo vão conseguir captar toda a água em função do volume e da intensidade. “Estamos atentos a essa questão e também às relacionadas a macrodrenagens, como ampliação de galerias e outros”, disse. Segundo Aroreira, diversas obras de drenagem estão previstas para começar neste ano, entre elas a ampliação do canal sob a Avenida Francisco Sá e construção de outro, paralelo, para ampliação da rede.
Ele, no entanto, nega que novos pontos de alagamento tenham surgido na capital desde 2009, quando a Carta de Inundações foi elaborada. O documento mapeou 82 regiões críticas no entorno de córregos em leito aberto ou trechos de galerias onde foram construídas avenidas sanitárias e desde então os locais são monitorados para o risco de inundação e para o alerta da população. A carta está prevista para ser atualizada no prazo de um ano. “Mas não haverá grandes mudanças em relação aos pontos de inundação e sim em relação ao volume de água, para mais ou para menos”, explicou. O gerente disse ainda que evitar acidentes é uma tarefa que exige apoio da população, que não deve enfrentar alagamentos ou correntezas. Também é necessário evitar jogar lixo nas ruas, que se acumula nos bueiros.
Palavra de especialista - Márcio Aguiar, mestre em Engenharia de Transportes e professor da Fumec
OBRAS NECESSÁRIAS
As inundações em locais não previamente mapeados e previstos vão continuar. O que temos em Belo Horizonte hoje nos pontos mais baixos é uma concentração de água muito grande, porque impermeabilizamos a cidade à medida que a construímos. Isso, ante nosso histórico ruim de manutenção das redes de drenagem, que só vai funcionar se os canais coletores estiverem desobstruídos. Observo que a quantidade de sujeira nas bocas de lobo as tem tornado ineficientes. Algumas vias foram construídas abaixo da máxima cheia, como a Cristiano Machado, onde a galeria debaixo acaba assoreada. Em outros pontos, esses erros se repetem e lugares que não tinham um histórico de inundações passam a ser perigosos por falta de manutenção e de intervenções preventivas, já que são obras de pouco valor político. Um tipo de intervenção que deveria ser feito com mais frequência é a construção de bacias de drenagem, como fazem São Paulo e Rio de Janeiro. São estruturas que protegem contra chuvas extemporâneas, que chegam acima do previsto pela drenagem instalada. É isso que vai nos salvar de chuvas que o poder público caracteriza como exceções, mas que ano a ano se repetem e estão passando a se tornar regra.
O que era receio se tornou um perigo real no fim da tarde de sexta-feira, quando uma chuva de 93 milímetros despejados em uma hora transformou a Rua Diorita num rio de corredeiras velozes capazes de derrubar a pesquisadora Maria Ester Ribeiro, de 59, que se tornou a primeira pessoa a morrer por causa das chuvas em BH desde 2013. A rua, apesar do perigo constante, não consta na Carta de Inundações da capital e não tinha nenhuma das mil placas instaladas em 2009 pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) para alertar sobre locais suscetíveis a enxurradas e alagamentos. Algo que essa tempestade mostrou se repetir em outros bairros que também não estão contemplados pelos estudos, como o Alto Barroca (Oeste) e o Coração Eucarístico (Noroeste), pondo em xeque a cobertura dessa rede de alertas.
Essa situação é fruto de a impermeabilização constante da cidade não ser acompanhada de uma ampliação da rede de drenagem e da construção de piscinões, o que acaba também agravado pelos descartes ilegais de lixo e entulho e a deficiência na limpeza dos dutos de escoamento pluviais. Em novembro, a Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) revelou ao Estado de Minas que a capital mineira tinha alterado a dinâmica de pontos inundáveis devido a obras viárias e ao crescimento da própria metrópole. Por esse motivo, a superintendência informou ter requisitado um levantamento das nove regionais sobre locais onde há necessidade de maior manutenção das drenagens e até de intervenções para evitar o acúmulo de água, um estudo que ainda não está pronto e, por isso, não substitui o de 2009.
Na Rua Diorita, por exemplo, onde morreu a pesquisadora, o encarregado de almoxarifado já teve de usar uma prancha de madeira para resgatar da corredeira duas mulheres que ficaram ilhadas no ano passado. “Faltam bocas de lobo na Rua Platina e nas outras mais altas para a água não chegar com tanta força aqui. Depois que encontra o muro do metrô é que começa a ficar mais fundo. Estamos precisando de obras aqui com urgência. Caso contrário, mais gente pode morrer, mais gente vai perder a mãe, como a família da senhora que faleceu aqui na sexta-feira”, disse Jamil.
Naquele mesmo fim de tarde tempestuoso, os bairros mais altos da região tiveram suas ruas mais íngremes convertidas em cachoeiras, segundo as palavras de moradores que enfrentaram a situação. No Alto Barroca, a Rua Conselheiro Saraiva, entre a Avenida Silva Lobo e a Rua Santa Cruz, a concentração de enxurradas que desembocaram do alto do bairro foi tanta que uma residência acabou inundada e os bombeiros precisaram ser chamados. A via não tem placas de alerta contra inundações nem consta na carta da PBH. Na casa atingida não havia ninguém ontem, mas os vizinhos confirmaram que a cada tempestade têm ficado mais apreensivos com o comportamento violento da água. “Moro aqui há 30 anos e nunca tinha acontecido de uma casa ser inundada. Tinha muito na (Avenida) Silva Lobo, mas porque tem um córrego lá. Acho que precisamos de mais bocas de lobo e de um controle sério sobre o lixo que as pessoas jogam no passeio e que vai entrar direto nos poucos bueiros que temos”, reclama a manicure Rosália Xavier, de 58 anos.
No Bairro Coração Eucarístico, outra área gravemente afetada pela última chuva de acordo com os registros dos Bombeiros Militares, a Rua Padre Pedro Evangelista teve vários pontos inundados por onde veículos ficaram impedidos de passar. Essa via também não está no circuito das placas de alerta ou consta na carta de inundações. Do alto da via, que começa na PUC-MG, até a parte mais baixa, que chega na Via Expressa, há apenas quatro bocas de lobo em quatro quarteirões, o que tem sido insuficiente para dar vazão à chuva, principalmente com o aumento do lixo produzido por moradores de rua e frequentadores de bairros próximos, segundo a vizinhança. “Isso passou a ficar assim há pouco mais de dois anos. O bairro é muito antigo e não temos rede pluvial que consiga dar conta das chuvas. Não adianta reclamar na prefeitura, que só vem limpar bueiros, precisamos de obras urgentes. Ou vão esperar que mais alguém morra aqui?”, indagou o comerciário Geraldo Farias, de 72 anos, que mora há 50 no bairro.
PBH nega alterações
Sobre o acidente na Rua Diorita, o gerente de Gestão das Águas Urbanas da Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura de Belo Horizonte, Ricardo Aroeira, afirmou que o caso “vai servir para avaliar para ver se há necessidade de ampliação das redes de microdrenagens (bocas de lobo)”. Ressaltou, no entanto, que em temporais muito fortes, como o de sexta-feira, nem sempre as bocas de lobo vão conseguir captar toda a água em função do volume e da intensidade. “Estamos atentos a essa questão e também às relacionadas a macrodrenagens, como ampliação de galerias e outros”, disse. Segundo Aroreira, diversas obras de drenagem estão previstas para começar neste ano, entre elas a ampliação do canal sob a Avenida Francisco Sá e construção de outro, paralelo, para ampliação da rede.
Ele, no entanto, nega que novos pontos de alagamento tenham surgido na capital desde 2009, quando a Carta de Inundações foi elaborada. O documento mapeou 82 regiões críticas no entorno de córregos em leito aberto ou trechos de galerias onde foram construídas avenidas sanitárias e desde então os locais são monitorados para o risco de inundação e para o alerta da população. A carta está prevista para ser atualizada no prazo de um ano. “Mas não haverá grandes mudanças em relação aos pontos de inundação e sim em relação ao volume de água, para mais ou para menos”, explicou. O gerente disse ainda que evitar acidentes é uma tarefa que exige apoio da população, que não deve enfrentar alagamentos ou correntezas. Também é necessário evitar jogar lixo nas ruas, que se acumula nos bueiros.
Palavra de especialista - Márcio Aguiar, mestre em Engenharia de Transportes e professor da Fumec
OBRAS NECESSÁRIAS
As inundações em locais não previamente mapeados e previstos vão continuar. O que temos em Belo Horizonte hoje nos pontos mais baixos é uma concentração de água muito grande, porque impermeabilizamos a cidade à medida que a construímos. Isso, ante nosso histórico ruim de manutenção das redes de drenagem, que só vai funcionar se os canais coletores estiverem desobstruídos. Observo que a quantidade de sujeira nas bocas de lobo as tem tornado ineficientes. Algumas vias foram construídas abaixo da máxima cheia, como a Cristiano Machado, onde a galeria debaixo acaba assoreada. Em outros pontos, esses erros se repetem e lugares que não tinham um histórico de inundações passam a ser perigosos por falta de manutenção e de intervenções preventivas, já que são obras de pouco valor político. Um tipo de intervenção que deveria ser feito com mais frequência é a construção de bacias de drenagem, como fazem São Paulo e Rio de Janeiro. São estruturas que protegem contra chuvas extemporâneas, que chegam acima do previsto pela drenagem instalada. É isso que vai nos salvar de chuvas que o poder público caracteriza como exceções, mas que ano a ano se repetem e estão passando a se tornar regra.