A imagem revela a mais violenta e chocante ocorrência do carnaval de Belo Horizonte. Na terça-feira do feriado, Yuri foi até o Bairro Primeiro de Maio, na Região Nordeste, onde morou com a mãe de seus três filhos, Jéssica Vítor de Araújo, e deixou recado que passaria lá no dia seguinte para dar um beijo nas crianças. Não voltou. Saiu do Quarteirão Pataxó da Praça Sete levado pelo rabecão placa OPQ- 9511 para o Instituto Médico Legal (IML).
“Onde está meu pai? Eu tô com saudade”, chorava Gabriela, a filha mais velha de Yuri, na última sexta-feira.
A morte de Yuri desperta a atenção por vários motivos: o assassinato a pontapés, a tentativa de esmagamento da cabeça da vítima, o motivo fútil (a versão atribuída aos agressores é de que ele teria roubado R$ 10), a barbárie nas últimas horas do carnaval – festa renascida com aspecto lúdico em BH nos últimos anos – e o local do crime: o centro nervoso da capital, a Praça Sete.
Uma testemunha disse aos militares que o jovem, nascido no Bairro Pirajá, na Região Nordeste de Belo Horizonte, foi cercado por cinco homens. “Ele foi chutado, derrubado no chão e pularam repetidas vezes sobre ele”, afirmou. “Teve a cabeça prensada entre os pés dos agressores e o chão”, detalhou a funcionária de uma lanchonete próxima à cena do crime.
O instrutor de muay thai (arte marcial tailandesa) Francisco Ricardo Sabino Neto, de 30, o único preso em flagrante, teria sido um dos agressores, segundo relato de testemunhas. Mas Francisco foi liberado na sexta-feira seguinte, pois, segundo informou a assessoria de imprensa da Polícia Civil, não havia provas para mantê-lo preso.
Outra testemunha disse que foi Francisco o responsável por dar uma rasteira em Yuri e jogá-lo no chão. O acusado, por sua vez, disse aos policiais que estava voltando de uma festa de carnaval quando escutou a vítima chorando e dizendo que estava sendo acusado de ter roubado R$ 10. O instrutor de muay thai afirmou ter afastado Yuri dos agressores e tomado dele uma garrafa plástica com loló (entorpecente à base de clorofórmio e éter). Pessoas que presenciaram o linchamento contradizem o depoimento e dizem que Francisco participou da sessão de espancamento. O instrutor tem contra si queixa por agressão e ameaças de morte, registrada no fim de janeiro por sua namorada.
Os outros quatro agressores, segundo relato de testemunhas aos policiais, conseguiram escapar fugindo em direção à Praça da Estação. “Ele foi agredido, mas levantou, pediu para não baterem mais, mas nesse momento um homem vestindo camisa do Barcelona pisou várias vezes na cabeça dele”, relatou uma das pessoas presentes. Quando Yuri perdeu os movimentos, teve todos os documentos roubados pelo grupo.
Apesar de não divulgar detalhes da apuração, o chefe da Divisão Especializada em Investigação de Crimes Contra a Vida, delegado Luiz Flávio Cortat, afirma que a equipe responsável pelo levantamento é a mesma que há menos de duas semanas elucidou a morte brutal do morador de rua Januário da Silva, o Índio, de 57 anos, vítima de chutes na cabeça enquanto dormia na madrugada de 15 de janeiro.
Violência conhecida de outros carnavais
A morte brutal de Yuri foi a segunda tragédia a se abater sobre a família Alves em um carnaval. No de 2009, a tia do rapaz, Mônica Fontes Matos, foi assassinada com uma facada pelo irmão. “Ele (o assassino) estava brigando com a esposa e ela entrou para separar. Meu tio deu uma facada e minha mãe morreu ali”, recorda Caroline Fontes Dias, de 18, prima do rapaz linchado, apontando para o local do terreno onde a mulher ficou caída com a faca cravada na barriga. Caroline recorda que o tio foi preso em flagrante, mas ficou apenas 101 dias no presídio antes de ser solto. “Só tem justiça quando aparece na televisão”, entende Caroline.
Yuri era o segundo de quatro irmãos. A irmã mais velha tem 22 anos; o mais novo, 8. Na terça-feira, depois que deixou a casa onde viveu com a ex-companheira Jéssica e os três filhos, o rapaz voltou para a casa da mãe, no Bairro Pirajá. Um terreno com seis construções, todas sem reboco, onde moram cerca de 20 pessoas da família. É em uma delas que vive a prima Caroline.
O marido dela, Lucas Alves de Alvarenga, de 22, foi criado com Yuri e lembra que ele não era de procurar brigas. “As pessoas que bateram nele pegaram os documentos e jogaram fora. Queriam que ele ficasse como indigente”, avalia. Lucas acredita que Yuri estivesse com uma turma de amigos quando surgiu a desavença com outro grupo. Os demais correram, mas Yuri não conseguiu, pois estava com o pé machucado. “Ele não deu conta de correr. Pegaram ele na covardia”, imagina. “Pode não ter justiça para eles aqui, mas tem a justiça de Deus.” A mãe do rapaz, Sheila Alves, muito abalada com a morte do filho, não quis conversar com a reportagem.
Descrença “Começamos a namorar quando tínhamos 15 anos e ficamos cinco anos juntos”, recorda Jéssica de Araújo, sobre o pai de seus filhos. Os dois terminaram o relacionamento após Yuri ser preso, em agosto de 2014. O jovem foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão por assalto à mão armada, mas desde agosto do ano passado cumpria prisão domiciliar. Jéssica diz que a lembrança de Yuri será de alguém que amava os filhos. Ele gostava de andar de patins, o que fazia muito bem, principalmente no parque vizinho à casa da mãe dele.
Jéssica estudou até a 7ª série; Yuri, até a 6ª. A jovem conta agora com a ajuda da mãe para criar os três filhos. Não acredita que a polícia se empenhará na apuração da morte. “Eles vão largar isso para lá”, lamenta. Até o fechamento desta edição, nenhum órgão ligado aos direitos humanos acompanhava a investigação sobre o assassinato brutal de Yuri.
Triste coincidência
O indígena Galdino Jesus dos Santos, da etnia pataxó – a mesma que nomeia o quarteirão fechado onde Yuri foi linchado –, foi assassinado enquanto dormia em uma parada de ônibus na Asa Sul, em Brasília. A brutalidade completará 20 anos em abril do ano que vem. Cinco rapazes de classe média de Brasília atearam fogo a Galdino.
Escalada de linchamentos
De acordo com um estudo de fôlego comandado pelo professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil, nos últimos 60 anos, cerca de 1 milhão de brasileiros já participaram de, pelo menos, um ato de linchamento ou de uma tentativa. Martins lançou no ano passado o livro Linchamentos – A justiça popular no Brasil (Editora Contexto). O estudo aponta que a execução de um criminoso, suposto ou verdadeiro, sem formação de um processo, apresentou queda significativa no início dos anos 2000, mas aumentou em velocidade progressiva de 2013 em diante. “Os linchamentos expressam uma crise de desagregação social. São, nesse sentido, muito mais do que um ato a mais de violência entre nós. Expressam o tumultuado empenho da sociedade em ‘restabelecer’ a ordem onde ela foi rompida por modalidades socialmente corrosivas de conduta social”, escreveu Martins no livro.
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