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Estado de Minas

Transferência de pacientes para residência terapêutica marca fim dos manicômios em BH

Últimos remanescentes de um modelo ultrapassado de isolamento e segregação, cinco pacientes com problemas psiquiátricos da extinta Clínica Serra Verde foram transferidos ontem de ala em hospital de BH para residência terapêutica no Bairro Esplanada


postado em 02/03/2016 06:00 / atualizado em 29/08/2016 15:34

Na nova casa, Rosa* segura o urso tricotado pela terapeuta ocupacional e levado como lembrança(foto: Ramon Lisboa/EM/DA Press)
Na nova casa, Rosa* segura o urso tricotado pela terapeuta ocupacional e levado como lembrança (foto: Ramon Lisboa/EM/DA Press)
“Vamos embora pra casa, Rosa*? Fecharam o hospital...” Com voz mansa e o braço estendido no ar, oferecendo um apoio, a terapeuta ocupacional Izabela Lopes convida a paciente psiquiátrica Rosa (nome fictício) a dar o último adeus aos cerca de 30 anos em que ela permaneceu isolada dentro do último manicômio a fechar as portas em Belo Horizonte, a Clínica Serra Verde. Com uma flor nos cabelos, postura ereta e usando roupas do tamanho dela (daqui a pouco vocês vão entender a importância desses detalhes), Rosa é um dos cinco internos remanescentes de uma política ultrapassada de isolamento e segregação dos pacientes psiquiátricos nos antigos hospícios.

A saída desses “últimos” sobreviventes rumo a casas de verdade, chamadas de residências terapêuticas, representa um marco na história da retirada de hospitais dos pacientes psiquiátricos da Região Metropolitana de BH. A mudança começou há 15 anos, desde que a capital mineira encampou a luta antimanicomial, iniciada pelo italiano Franco Basaglia na década de 1970, na Europa. “Pode vir, Marcelo*...”, chama o psicólogo Leonardo Augusto, oferecendo uma barra de chocolate para que o homem alto e forte, mas com comportamento infantil, enfim, aceite entrar na Van, junto dos outros. O transporte os levará até o novo endereço, com camas individuais e vitrais nas janelas, no Bairro Esplanada.

Aos poucos, desde 2001, a Secretaria Municipal de Saúde vem bancando, também com recursos do Ministério da Saúde, a retirada desses pacientes psiquiátricos da Pinel, Psicominas, Clínica Nossa Senhora de Lourdes e, por último, a maior delas, a Clínica Serra Verde, que encerrou as atividades em 2012, com a transferência de 149 pessoas para um anexo no Bairro Padre Eustáquio, em convênio com o Hospital Sofia Feldman. “Quando chegou aqui, Rosa vivia sem roupas e se arrastava pelo anexo, como se fosse uma cobra. Ela não suportava contato físico. Não se mudam 30 anos em três, mas hoje ela nos permite estar na companhia dela, escolhe as próprias roupas e adora perfumes e cremes cheirosos”, explica Izabela, sinalizando para o fato de que Rosa acaba de jogar um papel no lixo. “Na clínica, os pacientes comiam lixo”, completa.
EM acompanha dia histórico da luta antimanicomial em BH
À medida em que se adaptavam à realidade mais humanizada do Hospital Sofia Feldman, os pacientes foram sendo transferidos para as residências terapêuticas, com capacidade para até 10 pessoas morando em uma mesma casa, sob a orientação de dois cuidadores por turno, dois estagiários e dois supervisores com curso superior. “Eles eram esquecidos pelas famílias lá dentro da clínica. Ficavam misturados homens e mulheres, sem roupas, igual a bichos. Na semana passada teve o enterro de um deles, o José, que morreu de câncer no cérebro, só com o enfermeiro e o assistente social, que choraram bastante. A família nem ficou sabendo”, conta a cozinheira Marli Moreira, que trabalhou na Serra Verde e ajudou na transição do Sofia Feldman. Ao ver seus pacientes indo embora na Van, Marli chora, relembrando dos gostos de cada um: Marcelo é fã de chocolate e tem mania de comer guimbas de cigarro; Glauro come de tudo, inclusive lixo; Glória prefere gelatina e Rosa detesta moranga.

Ao todo, há hoje 179 moradores egressos do antigo sistema psiquiátrico, vivendo hoje dignamente em 33 residências localizadas em BH, incluindo os cinco casos mais graves que vieram da Serra Verde e foram retirados para a última casa alugada pela prefeitura com este fim. Passado o primeiro momento de tensão, ontem, em que os pacientes ficaram agitados com a mudança, sem saber ao certo para onde estavam indo. Um deles se recusa a vestir roupa, que segundo ele, machuca a pele. Segue de cueca mesmo, com o resto do corpo todo marcado por ferimentos. “Este é o fim do hospital./A nossa luta é antimanicomial!”, grita uma turma de militantes, em coro, na porta do Sofia Feldman, com cartazes escritos a mão. Eles se tornam eufóricos no momento em que o portão é simbolicamente fechado, para sempre.

Coordenadora da equipe de desinstitucionalização da Secretaria Municipal de Saúde, Flávia Torres, acompanha pessoalmente todo o processo, desde o anexo até a chegada à residência. Conhece os ex-pacientes, agora moradores, pelo nome. E vice-versa. “Não tenho dúvida de que nada melhor do que a liberdade para tratar o sujeito. Muitos empoderamentos só avançam depois que ocorre a alta hospitalar do paciente. A convivência social cobra que ele use uma roupa. A cidade trata, a rua trata”, defende Flávia Torres, coordenadora da equipe de desinstitucionalização da Secretaria Municipal de Saúde. Ela conta o caso da primeira vez em que foram almoçar no restaurante no Padre Eustáquio, em que os cinco se portaram bem à mesa. “Na clínica, há relatos de que eram obrigados a disputar a comida e por isso se acostumaram a comer com as mãos”.

Antes de ir embora da nova casa, a coordenadora é chamada nominalmente por Glória*, já deitada na cama, embaixo de um cobertor. Ela pede um copo de água, que acaba recusando quando a moça se aproxima atendendo ao pedido. Glória queria apenas um gesto de carinho. Na sala de estar, ocorre outro encontro, agora com Rosa, que está mais serena, deitada no sofá. Nos braços, traz o ursinho tricotado por Izabela, que trouxe o mimo para lhe deixar de lembrança. “Também comprei um presente para a Glória, que é apaixonada por bonecas, mas esqueci no carro. Deve ser desculpa para voltar, né? Foram três anos e meio de convivência”, suspira.

No alpendre da casa do Esplanada, perto do portão, Marcelo está sentado nos degraus da escada. Ao contrário da maioria dos outros, ele ainda fala algumas palavras, não perdeu toda a capacidade da linguagem. Quem fizer silêncio vai perceber que, inclusive, Marcelo está cantarolando. É um bom sinal. Ao passar perto dele para ir embora, ele balbucia algumas palavras. Pede um cigarro (ele é aquele caso acostumado a comer guimbas, desde que o vizinho jogava para ele no quintal de casa). Usa uma blusa com o slogan do jacarezinho, de segunda mão, e uma bermuda jeans. É acudido por uma das funcionárias da prefeitura, que está de plantão. Sente-se à vontade na sua casa. Finalmente.


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