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Estado de Minas

Mãe supera deficiência auditiva e sonha com curso técnico

Ela encarou barreiras, teve dois filhos com paralisia cerebral e não desistiu: cuida deles e ainda completa o ensino fundamental


postado em 07/03/2016 06:00 / atualizado em 07/03/2016 08:46

"Me garanto na colher. Assento cerâmica, sei levantar paredes e rebocar (%u2026) Tinha medo de ficar desempregada, de receber uma porta na cara." (Maria José Almeida Santos Ribeiro) (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
Quando Maria José Almeida Santos Ribeiro, de 32 anos, nasceu, um anjo esbelto tocou trombeta para anunciar: “Vai carregar bandeira”. A deficiência auditiva de nascença fez com que a jovem só pronunciasse as primeiras palavras aos 9 anos. A audição parcial foi entrave para que ela aprendesse a ler. “Não tinha acesso à escola. Não me aceitavam.” Ainda na infância, começou a trabalhar em casa de família. Foi a patroa, professora, que conseguiu vaga em escola pública de Capelinha, município do Vale do Jequitinhonha, onde morava a família da menina. As letras só se desembaralharam tempos depois, no início da adolescência.

A história de Maria é da ordem do lirismo anunciado por Adélia Prado no poema Com licença poética – em que a poeta parodia os versos em que Carlos Drummond de Andrade assumia ser gauche na vida. O cargo é muito pesado pra mulher. Com 1,56 metro, a jovem que aniversaria no 19º dia do mês dedicado às mulheres entendeu que teria que se posicionar para mudar a sina de ser, nas palavras da escritora de Divinópolis, “desta espécie ainda envergonhada”. Quando criança, descobriu que teria que viajar para Belo Horizonte para tratar o problema auditivo. O desejo impulsionou os pais a tentarem a vida na capital. Mudaram-se para BH em busca de tratamento médico para a menina e oportunidades.

Ela trabalhou desde muito cedo. As primeiras tarefas foram ao lado do pai, Carmerinho dos Santos Ferreira, de 55, que a ensinou o ofício de pedreiro. “Me garanto na colher. Assento cerâmica, sei levantar paredes e rebocar”, afirma. “Procurei aprender várias coisas. A profissão do meu pai. Quando eu me casasse ou tivesse a minha casa, eu mesma poderia mexer. Tinha medo de ficar desempregada, de receber uma porta na cara.”

A primeira mulher com quem trabalhou na cidade natal a indicou para ser babá em BH. Foi a segunda patroa que a encaminhou para tratamento com um fonoaudiólogo. Nos locais onde trabalhou, executava as tarefas com esmero, mas foi dispensada inúmeras vezes. Foram 36 empregos diferentes, mas sempre a mesma justificativa. “Me diziam que gostavam do meu trabalho, mas que precisavam de alguém que pudesse falar ao telefone e atender recados.” Inspirada pelo anjo trombeteiro, Maria aceitou “os subterfúgios que lhe cabiam”. Com verdade, enfrenta cada um dos desafios que lhe aparecem.

Casou-se e da união, vieram Caio, de 9 anos, Vítor, de 4, e Paulo Alexandre, de 3. Ora sim ora não, crê em parto sem dor. Quando sim, pensa no momento em que deu à luz os dois primeiros filhos, em duas gestações diferentes em que teve complicações que impediram a chegada de oxigênio ao cérebro dos bebês. Recorda o quanto foi difícil, depois de um árduo trabalho de parto, ouvir dos médicos que os filhos tinham paralisia cerebral. “O médico me disse que a vida do Caio estava nas minhas mãos e que ele demoraria a se desenvolver. Poderia vegetar, não andar e ter uma leve perda auditiva.” Muitas perguntas lhe tomaram a mente. Não sabia que o filho teria que usar cadeira de rodas.

Quando não, não tem dúvida em dizer que o fato que mais marcou sua vida foi o nascimento dos filhos. Faz o que for necessário para vê-los plenos. “Quando Caio completou três meses de vida, conheci um fisioterapeuta que disse que o médico se precipitou, que não poderia prever como seria o desenvolvimento dele. Na época do nascimento, fiquei muito assustada, desorientada. Eram muitas perguntas sem respostas. As respostas vieram com o tempo.”

O que sente, Maria fala. De maneira tão articulada que é difícil perceber os problemas com a fala decorrentes da deficiência auditiva. A vida dela é a prova de que “dor não é amargura.” Mãe de três, inaugurou linhagens. Sonha fundar reinos. “Tenho fôlego para lutar por meus ideais.” No horizonte, estão a carteira de habilitação e curso técnico na área de engenharia civil. Atualmente, tenta completar a formação do ensino fundamental no programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “O sonho do meu pai era ter um filho homem para exercer a profissão dele. Não a parte pesada. Ele queria que o filho pudesse projetar, planejar as casas. Como ele não tinha como pagar um ajudante e não teve filhos homens, era eu que fazia essa tarefa. O ajudava a virar massa. Fazer esse curso técnico é realizar sonho de muitos anos.”

Não foi o Rio de Janeiro declamado por Adélia, mas foi para São Paulo sem conhecer ninguém, sem ter onde ficar para tentar uma cirurgia para que Caio pudesse andar. “Levei quatro malas. Duas grandes e duas pequenas. Numa delas, levei panela, batatinha e macarrão. Não sabia o que encontraria. Peguei chuva, passei fome e frio com ele na rua”, recorda. Foi com dinheiro contado para ir, ficar no máximo três dias e voltar. Foram 35 na terra da garoa. Tempos difíceis que ela enfrentou para conseguir o tratamento do filho. Bateu de porta em porta para conseguir faxina – uma forma de se sustentar nesse meio-tempo. Conseguiu muito mais. Fez “quitandas” que caíram no gosto de muita gente. Com o dinheiro da venda, conseguiu se manter.

Se, como disse a poeta, a tristeza da mulher não tem pedigree, a vontade de alegria de Maria tem raiz na família, nos pais, que foram seu esteio. Com a mãe, aprendeu a preparar “quitandas”. Acorda às 5h. Cuida da casa, leva os filhos para a escola e segue para a autoescola. À tarde, enfrenta o desafio do transporte público para levar os filhos para a reabilitação. Faz roscas de abóbora e mandioca para vender. No hospital, é reconhecida por todos e tem muitos clientes que propagandeiam a qualidade dos quitutes. Recebeu a reportagem na AMR, onde passa a metade do dia com os filhos e também o local onde pode se reinventar. Maria prova que “ser coxo na vida é maldição pra homem”. Ela é desdobrável.

Momentos

A história de Maria José foi escrita pelo Estado de Minas em três momentos: em abril de 2014, quando passava por um verdadeiro calvário para levar os dois filhos cadeirantes do Bairro Tancredo Neves, onde moram em Ribeirão das Neves, até a Associação Mineira de Reabilitação (AMR), no Bairro Mangabeiras, Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Foi a personagem de 25 de dezembro daquele ano, pela história de luta e superação. Voltou a ser notícia em setembro de 2015, quando a Justiça sugeriu mudança no trajeto do ônibus para facilitar o acesso dela e das crianças à AMR.


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