Cortando comunidades pobres, com altos índices de violência, e servindo de espaço para desmanches de veículos e assaltantes, as estruturas abandonadas da Ferrovia do Aço são um exemplo gritante de desperdício do dinheiro público. Desde 1973, quando começou a ser construída, a ligação férrea entre Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro jamais teve um vagão sequer circulando em muitos trechos, como o de Belo Horizonte a Itabirito, passando por Sabará. Só nesse segmento, foi abandonada uma sequência de seis túneis e quatro viadutos.
É em Sabará, na Grande BH, que boa parte dessa estrutura é avistada como monumentos ao desperdício. Uma sequência de quatro túneis entre os morros do município está entre os nove quilômetros desse tipo de passagem que foram esquecidos. Terminaram inundados, pichados e depredados. O local, ainda que reconhecidamente perigoso, por figurar como cenário de vários crimes, é ainda usado por trilheiros que desafiam a sorte entre os caminhos abertos entre o mato e os desmanches de veículos – que, depois de “depenados”, são incendiados. Uma dessas passagens foi bloqueada e a água acumulada chega à altura do joelho. Sinais da década de 1970 mostram há quanto tempo esses monumentos ao descaso estão abandonados, a não ser pelos morcegos que se dependuram no alto da estrutura de concreto.
Pouco antes, oito pilares que nunca suportaram trilhos se erguem sobre a rodovia MG-05 e o Rio das Velhas, no caminho para Sabará. No meio deles, a Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) continua a servir de caminho para o escoamento da produção de minério de ferro e aço de Minas Gerais, e ainda é trajeto da única linha férrea diária interestadual do Brasil – um exemplo de como é importante esse tipo de transporte, bem ao lado das demonstrações de desperdício.
A estrada que foi roubada
Em Honório Bicalho, dos trilhos que deveriam seguir o curso do Rio das Velhas, na ligação entre Raposos e Rio Acima, restaram menos de 500 metros. Casas invadiram áreas de domínio da ferrovia, plantas encobrem a linha férrea, antigas casas de arquitetura ferroviária foram invadidas e descaracterizadas, enquanto barracões e garagens foram erguidos no antigo caminho das locomotivas. “Há quadrilhas especializadas que chegam armadas e usam caminhões com braços hidráulicos para içar e levar os trilhos, que não são vigiados. Para impedir isso, só com tombamento e guarda dos órgãos responsáveis”, afirma Paulo Scheid, da organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) Trem de Minas.
Há estruturas históricas, como as pontes de aço sobre o Rio das Velhas, entre Raposos e Nova Lima, que também se acabam sem qualquer cuidado ou manutenção. Os vãos entre os trilhos foram cobertos por terra e brita, transformando a passagem numa estrada precária para carros, motocicletas e carroças. Em um dos pontilhões do trecho, em Raposos, os trilhos praticamente desapareceram, soterrados para possibilitar a passagem de veículos. Inscrições que fazem referência à antiga ferrovia estão descaracterizadas pelo roubo de letras e por pichações. O avanço das invasões na área de domínio e sobre as estruturas da ferrovia vai engolindo peças antigas da estrada. As casas em terreno invadido acabam sendo construídas em áreas alagáveis nos períodos chuvosos, o que representa ameaça aos moradores.
Para o professor Antônio Prata, chefe do Departamento de Engenharia de Transportes do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas (Cefet-MG), a realidade mostra a necessidade de circulação dos passageiros dessas regiões, e os trechos são viáveis, ainda que feitos por veículos leves sobre trilhos, menores do que trens e metrô. “São ligações muito importantes, mas essa falta de destaque nos investimentos do setor ferroviário é o mesmo que vemos no metrô de BH, que há décadas aguarda o funcionamento da linha Barreiro/Calafate”, compara. Para o especialista, o Estado tem perdido com essa falta de variação na matriz de transportes. “A Estrada de Ferro Vitória-Minas consegue cumprir uma função de transporte interessante, ainda que às vezes regionalmente, ligando BH, Ipatinga, Governador Valadares e as cidades do Espírito Santo”, exemplifica.
Faltam projetos e interessados
Os trilhos, viadutos e túneis abandonados da Ferrovia do Aço e os que restaram da ferrovia de Raposos a Rio Acima são de responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Segundo o departamento, esse patrimônio vem sendo cedido às prefeituras dos municípios cortados pelas ferrovias. Mas, especificamente para os trechos citados pela reportagem, não há ainda nenhuma ação de concessão, seja para reativação ou uso diverso.
Para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) “a melhor forma de preservar esse patrimônio é com a sua utilização e funcionamento”. A maneira de fazer isso, segundo o instituto, é por meio de parcerias. “O Iphan prima por estabelecer parcerias com entidades interessadas em dar uso aos bens. Nesse âmbito, convidamos as prefeituras dos municípios a manifestar-se objetivamente a respeito de interesse na manutenção, utilização e guarda dos bens, destinando-os ao uso sociocultural.” Por enquanto, apenas a Estação Ferroviária de Raposos é alvo de processo de avaliação, com objetivo de instalação de um centro cultural e outros equipamentos para a comunidade.
enquanto isso...
...Redescoberto trecho no cerrado
As valas que cortaram o cerrado para servir de leito a um dos trechos originais da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) foram reencontradas em Naque, no Vale do Rio Doce – parte do segmento que deveria levar a Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, mas que foi desviado para o Vale do Aço. Esse destino foi abandonado após a extração de minério de ferro ter transformado o mapa econômico do Brasil e assim mudado o rumo da ferrovia, inicialmente concebida para escoar café. A descoberta do trecho sem trilhos se deu após investigação histórica da revista Caminhos Gerais.