São Geraldo – Para vencer os 350 metros de altura da subida desde a Estação São Geraldo até a serra, a locomotiva a vapor precisava de uma parada de 40 minutos para ajustes mecânicos, e outra no meio do caminho, para abastecer a caldeira com a água que minava dos morros. A subida pelos trilhos de aço era lenta. Fazia a máquina queimar muita lenha, enquanto cuspia fumaça preta pelas passagens escavadas nos rochedos e nos túneis em meio à mata atlântica. No alto, as recompensas da Estação Mirante: leite queimado no copo para as crianças e uma visão vasta dos vales da Zona da Mata. Trens como esse, da Ferrovia Leopoldina, de 1883, tornaram viáveis as viagens de longa distância e o transporte de cargas Brasil afora. “Os vagões iam sempre cheios, com estudantes de Viçosa, trabalhadores de Juiz de Fora e a gente indo passear no Rio de Janeiro ou em Ubá”, recorda-se a empresária Maria Helena do Carmo Lima, de 69 anos, uma das últimas a viajar na linha. Mas nem a importância histórica para o país, nem o valor cultural são suficientes para impedir que ferrovias como essa se deteriorem, por não interessarem a concessionárias ou aos órgãos de defesa do patrimônio, que assistem passivamente à deterioração do acervo, enquanto o país continua a escoar sua produção por estradas de rodagem precárias e caras.
Aos poucos, a Ferrovia Leopoldina vai sendo apagada da história por ferrugem e erosão, em um retrato da situação de vários trechos que faziam parte dos pacotes de concessões do governo federal, negociados a partir de 1996. Em 2013, com a Resolução 4.131 da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), começaram a ser devolvidos por serem “inviáveis economicamente”. Os trilhos passaram para o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit); as estações e demais estruturas, para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como vem mostrando o Estado de Minas desde a edição de ontem. Antiga administradora da Leopoldina, a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) é detentora de 7.080 quilômetros de linhas férreas e devolveu 742 quilômetros de “trechos antieconômicos” e 3 mil considerados “economicamente viáveis, coincidentes com segmentos priorizados pelo Programa de Investimentos em Logística”, segundo a resolução da ANTT. A agência cobrou indenização de R$ 700 milhões pelo abandono de parte do pacote.
Em São Geraldo, a estação de 1880 está sendo reformada pela segunda vez, mas o restante dos trilhos de aço e dos dormentes de madeira de lei foram repassados pela FCA ao Dnit, que não cuida de nada. O patrimônio vem apodrecendo no alto da serra, a uma distância de quatro quilômetros do terminal. Para chegar até lá, só atravessando estradas rurais de terra, entre fazendas e mata fechada, onde os trilhos serpenteiam do alto ao pé da serra.
Uma das mais impressionantes seções abandonadas ainda tem estruturas dependuradas a uma altura de 20 metros, sobre uma garganta de 60 metros de comprimento. Esquecida desde 1990, quando o último trem oficialmente passou por lá, a estrada foi engolida em vários pontos por voçorocas e erosões que partiram os aterros e as contenções que a sustentavam. Pelo menos nove trechos de trilhos resistem ao desmoronamento, dependurados no ar.
TRANSPORTE ONEROSO
Abandono que contrasta com os apelos do setor produtivo por mais investimentos em ferrovias, que são mais eficientes e seguras que as estradas de rodagem. No Brasil, o transporte ferroviário é o segundo em escoamento de cargas, com 20,7% do volume, enquanto o rodoviário responde por 61,1%. Contudo, 57% das rodovias avaliadas em 2015 por pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) são deficientes e aumentam em até 25% os custos do transporte. Para deslocar 10 toneladas por 10 quilômetros, caminhões gastam três vezes mais combustível do que locomotivas. “As concessionárias investiram nos trechos que existiam e que eram viáveis, mas quase não ampliaram nada, assim como o Estado também não o fez. Hoje, a estrutura e o investimento ferroviário do Brasil são irrisórios”, considera o professor Antônio Prata, chefe do Departamento de Engenharia de Transportes do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas (Cefet-MG).
Para o integrante da organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) Trem de Minas, Paulo Scheid, essas trocas de posse dos trilhos e a falta de políticas de conservação facilitam a deterioração do patrimônio ferroviário. “O assunto se tornou complexo, passando pela administração de diversos entes do Estado e os próprios órgãos gestores desconhecem a extensão desses bens”, afirma. Para ele, a questão vai da perda do valor de memória à impossibilidade de aproveitamento econômico. “Estamos perdendo um patrimônio que conta a história da ocupação do nosso país. Pior ainda é o desperdício. Se não usamos essas estruturas para reativar o transporte ferroviário, pelo menos não deveríamos desperdiçar recursos que já foram gastos para construir, usando os espaços como secretarias, unidades de saúde, bibliotecas, centros culturais”, disse. “É uma covardia os órgãos que deveriam primar pela proteção do patrimônio ferroviário jogarem isso para prefeituras e inciativa privada. Principalmente aquilo que foi abandonado pelas concessionárias. Nunca cuidaram desses trechos e os deixaram deteriorar, para finalmente devolver”, denuncia Antônio Prata.
Aos poucos, a Ferrovia Leopoldina vai sendo apagada da história por ferrugem e erosão, em um retrato da situação de vários trechos que faziam parte dos pacotes de concessões do governo federal, negociados a partir de 1996. Em 2013, com a Resolução 4.131 da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), começaram a ser devolvidos por serem “inviáveis economicamente”. Os trilhos passaram para o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit); as estações e demais estruturas, para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como vem mostrando o Estado de Minas desde a edição de ontem. Antiga administradora da Leopoldina, a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) é detentora de 7.080 quilômetros de linhas férreas e devolveu 742 quilômetros de “trechos antieconômicos” e 3 mil considerados “economicamente viáveis, coincidentes com segmentos priorizados pelo Programa de Investimentos em Logística”, segundo a resolução da ANTT. A agência cobrou indenização de R$ 700 milhões pelo abandono de parte do pacote.
Em São Geraldo, a estação de 1880 está sendo reformada pela segunda vez, mas o restante dos trilhos de aço e dos dormentes de madeira de lei foram repassados pela FCA ao Dnit, que não cuida de nada. O patrimônio vem apodrecendo no alto da serra, a uma distância de quatro quilômetros do terminal. Para chegar até lá, só atravessando estradas rurais de terra, entre fazendas e mata fechada, onde os trilhos serpenteiam do alto ao pé da serra.
Uma das mais impressionantes seções abandonadas ainda tem estruturas dependuradas a uma altura de 20 metros, sobre uma garganta de 60 metros de comprimento. Esquecida desde 1990, quando o último trem oficialmente passou por lá, a estrada foi engolida em vários pontos por voçorocas e erosões que partiram os aterros e as contenções que a sustentavam. Pelo menos nove trechos de trilhos resistem ao desmoronamento, dependurados no ar.
TRANSPORTE ONEROSO
Abandono que contrasta com os apelos do setor produtivo por mais investimentos em ferrovias, que são mais eficientes e seguras que as estradas de rodagem. No Brasil, o transporte ferroviário é o segundo em escoamento de cargas, com 20,7% do volume, enquanto o rodoviário responde por 61,1%. Contudo, 57% das rodovias avaliadas em 2015 por pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) são deficientes e aumentam em até 25% os custos do transporte. Para deslocar 10 toneladas por 10 quilômetros, caminhões gastam três vezes mais combustível do que locomotivas. “As concessionárias investiram nos trechos que existiam e que eram viáveis, mas quase não ampliaram nada, assim como o Estado também não o fez. Hoje, a estrutura e o investimento ferroviário do Brasil são irrisórios”, considera o professor Antônio Prata, chefe do Departamento de Engenharia de Transportes do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas (Cefet-MG).
Para o integrante da organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) Trem de Minas, Paulo Scheid, essas trocas de posse dos trilhos e a falta de políticas de conservação facilitam a deterioração do patrimônio ferroviário. “O assunto se tornou complexo, passando pela administração de diversos entes do Estado e os próprios órgãos gestores desconhecem a extensão desses bens”, afirma. Para ele, a questão vai da perda do valor de memória à impossibilidade de aproveitamento econômico. “Estamos perdendo um patrimônio que conta a história da ocupação do nosso país. Pior ainda é o desperdício. Se não usamos essas estruturas para reativar o transporte ferroviário, pelo menos não deveríamos desperdiçar recursos que já foram gastos para construir, usando os espaços como secretarias, unidades de saúde, bibliotecas, centros culturais”, disse. “É uma covardia os órgãos que deveriam primar pela proteção do patrimônio ferroviário jogarem isso para prefeituras e inciativa privada. Principalmente aquilo que foi abandonado pelas concessionárias. Nunca cuidaram desses trechos e os deixaram deteriorar, para finalmente devolver”, denuncia Antônio Prata.