Empresária fala dos desafios e alegrias de cuidar da filha de 29 anos, que tem atrofia cerebral

Ela recomenda que pais com filhos diagnosticados com microcefalia se informem e não escondam o bebê

Sandra Kiefer

A conversa com a empresária Odette Castro, de 58 anos, no apartamento alugado no Bairro Luxemburgo, na Região Sul de Belo Horizonte, inicia-se de forma incomum, a partir da citação de um gazebo.
Meio sem se lembrar do significado da palavra (pequena construção, que se ergue em jardins), a reportagem do Estado de Minas lê o texto indicado por Odette, que está publicado no perfil da autora na internet: “Ontem, decorando o gazebo dos noivos, usei um tecido rosa seco. A zeladora do local me pergunta: Uai, não tem que ser branco? Eu ri e disse: Alguém te disse que tem que ser branco? Ddepois, ela me procura e diz: É, fiquei pensando, não precisa ser só branco.Muito bom quando descobrimos que não precisa ser só branco”.

Com 1.001 seguidores no Facebook, Odette Castro tornou-se conhecida pela originalidade dos casamentos que decora com corações de veludo, bicos de tricô e flores do campo. Em meio à leveza e delicadeza dos temas relacionados ao amor eterno ou até que a morte separe, sobressaem posts mais urgentes, que deram origem ao livro intitulado Rubi. São relatos de Odette sobre a luta com a filha Beatriz, de 29, portadora de uma síndrome bastante rara chamada Rubinstein-Taybi, que, entre outras 15 características, provoca a atrofia do cérebro.

Odette Castro com a filha Beatriz: "Ela é um bebê eterno, para cuidar pelo resto da vida", diz a mãe - Foto: Jair Amaral/EM/D.A Press Em nome de outras mães e pais de crianças denominadas sindrômicas, daquelas que só de olhar se percebe que são excepcionais, incluindo bebês com Down e paralisia cerebral, Odette abre o verbo para uma nova geração que está surgindo no Brasil: crianças com microcefalia provocada pelo zika vírus. “O que dizer para as mães que vão começar agora essa luta? Que não tenham pena de si próprias e do bebê. Que não esperem nem um minuto e que comecem ‘ontem’ a pesquisar na internet, a ler e buscar tratamentos. Quando Beatriz nasceu, tive de enfrentar o mundo.
Mas hoje me considero uma das pessoas mais livres que conheço. Sabe por quê? Porque não me interessa o que você pensa de mim e da minha filha. De verdade”, ensina ela, que até a filha fazer 8 anos saía com todos os remédios dela na bolsa por medo de que a criança tivesse uma convulsão e morresse.

Há quase três décadas, quando Odette tinha a idade que tem hoje Beatriz, esperava a vinda da segunda filha depois de dois ultrassons ditos normais, seguidos de um parto natural, até então sem sustos. Foi surpreendida, porém, com o nascimento de um bebê roxo. Nenhum médico sabia o que dizer à mãe, exatamente como acontece hoje com os casos de microcefalia. Quando Odette perguntou se a filha tinha risco de morrer, um deles tentou consolar a mãe desesperada, dizendo que era o mesmo perigo de atravessar a rua sem olhar. “Tudo o que sei da vida aprendi com a Beatriz. Aprendi a brigar com alguém de verdade, olho no olho. Aprendi a ser humilde por alguém e a pedir uma consulta de graça. Entendi que por mais estranho que pareça, não posso apontar um defeito ou rir de você em público. Se olharem torto para a Beatriz, hoje eu olho torto também de volta”, conta ela, que já enfrentou muito preconceito com pessoas encarando a filha nos restaurantes e até em livrarias.

A desinformação em relação à zika é real, mesmo entre a comunidade de médicos e cientistas. Só na semana passada veio a confirmação oficial de que o zika vírus causa microcefalia e outras malformações, por meio de relatório divulgado em Atlanta, nos Estados Unidos. Com base na própria experiência, a mãe de Beatriz recomenda que as famílias não esperem para agir.
“Que elas não esperem nem um minuto. E que comecem ‘ontem’ a pesquisar na internet, a ler e buscar tratamentos. Minha história foi muito sofrida por não ter com quem compartilhar, por ninguém saber informar nada. A microcefalia no Brasil me incomodou pela displicência de os médicos não abrirem logo o verbo com as mães e as mandarem esperar um ano, sem saber o que fazer”, protesta Odette. Ela conta que, em um dos episódios, mediu por três meses a cabeça da filha com uma fita métrica vermelha, na esperança de que o diagnóstico se alterasse.

Com 1.113 casos de microcefalia confirmados para o vírus zika no país, sendo 52 investigados em Minas (dois confirmados), no último balanço do Ministério da Saúde, o alerta é geral, principalmente entre as famílias afetadas pela doença. “Minha condição financeira e a do pai eram boas. Beatriz teve acesso a todo tipo de terapia convencional e alternativa, parapsicólogos e simpatias populares. Mandaram trocar a cor branca do quarto, que diziam tirar o sono, e mudar tudo para lilás com tons de azul, que eu nem gostava muito, mas mudei”, diz Odette, que se dispõe a dar palestras e a explicar para outras mães as técnicas intuitivas a serem usadas para estimular bebês. Uma delas é deixar os bebês especiais se locomoverem no chão, em edredons, brincando naturalmente com outras crianças (primos e colegas), como forma de promover o equilíbrio e a confiança dos filhos. Outra é passar várias texturas no corpo do bebê para estimular o lado sensorial (açúcar, gelatina e até Bom Bril).

CRIANÇA ETERNA

No nascimento de Beatriz, foi dito a Odette que a filha nunca andaria nem falaria, mas a designer de casamentos, no meio da caminhada com Beatriz, descobriu que os gazebos podem contradizer o padrão convencional.
Depois de duas horas e meia de bate-papo com Odette, sentadas no sofá cinza-chumbo, toca a campainha. Beatriz está chegando da escola especial. Do lado de fora, dá para ouvir os gritos alegres da moça, que na verdade ainda é uma criança. Traz as unhas pintadas de rosa e um colar vermelho. “Não grita, Beatriz (e cochicha que a filha agora deu para gritar para chamar a atenção)”, impõe limites, fingindo-se de brava.

Beatriz vai chegando perto de Odette, carinhosa. Encosta nela a cabeça, dizendo “mãe”, uma das poucas palavras que aprendeu até hoje. “A gente sempre faz muito por um filho, mas sabe que ele vai crescer e tomar a rédea da vida. Tive de ensinar a Laura (a filha mais velha) a não se sentir uma adulta com uma limitação na vida porque tem uma irmã especial. Já a Beatriz não tem nada de timidez. Ela é atirada e até muito atrevida, não sei se esse é o comportamento dela ou se sente muita confiança na casa dela. Ela é um bebê eterno, para cuidar pelo resto da vida.”

MAIS PENSAMENTOS DE ODETTE

APROVAÇÃO
“Algumas pessoas escondem o filho por vergonha do outro. Você pode observar: todos os problemas das pessoas estão no outro. Para sobreviver, tive de pôr Beatriz no mundo. Você esconde o seu filho por medo da desaprovação do outro. E quem disse que os olhares do outro vão ser mais importantes que a minha filha? Você pode até achar estranho, mas não posso rir de você, não posso apontar um defeito. Posso chegar em casa e morrer de rir sozinha, mas não na rua, em público.”

DEUS MANDOU
“Não acredito que Deus escolha alguém para ter câncer ou ser cego, escolha mãe para perder filho em acidente ou ter filho com defeito. Isso acontece, é normal da vida. Mas a partir do momento em que o fato acontece e é concretizado, Deus abre as portas para você. Nunca questionei. Só pedi a Ele: “Já que você mandou, você vai me ajudar”. Tive muita ajuda divina e uma lucidez enorme por não ter tido vergonha e ter enfiado a cara desde o primeiro segundo. Sofri muito. Não achei tudo lindo e maravilhoso. Foi muito sofrido e tive muito medo.”

RESPONSABILIDADE
“A responsabilidade sobre a Beatriz é minha e do pai, que aliás não pensa nisso. A Laura não tem que cuidar da Beatriz. Ela ama a irmã, mas não tem obrigação de cuidar dela. Não tenho como transferir minha responsabilidade para os outros. Não sou orgulhosa, se você quiser fazer uma caridade e levar a Beatriz para passear por duas horas para que eu possa dormir, eu aceito numa boa.”

MEDO DE MORRER
“Estou voltando a ter medo, porque Beatriz está muito pesada agora e já não tenho forças para carregar. O estado não oferece a menor estrutura e realmente não entro em paranoia, mas e se eu morrer? Vai chegar uma hora em que vou ter de pôr a Beatriz em uma instituição, parece que tem uma na Pampulha. Antes, essa hipótese era totalmente absurda, mas imagine quando eu fizer 70 anos, 80 anos... Hoje, já é uma alternativa mais realista.”

PARA SABER MAIS
Livro Rubi
Editora Impressões de Minas
106 páginas, R$ 35
Onde encontrar: Livrarias Quixote e Scriptum.