Foram muitas idas e vindas pelas estradas do Brasil e de alguns cantos do mundo até que Lourival Silva Teixeira, de 61 anos, natural de Itaobim, no Vale do Jequitinhonha, decidisse estacionar o carro e puxar o freio de mão. Há “quatro, cinco anos”, não se lembra mais com exatidão, o ex-operador de guindastes e motorista de carretas parou o seu Fusca sob uma árvore, num bairro de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e deixou o tempo ultrapassar, sem pensar no conforto de casa, aconchego da família e aspectos bem práticos da vida, como CEP e contas de água e luz. Quando alguém pergunta onde mora, Lourival, conhecido como Penosa, aponta o veículo verde-claro e responde: “É ali”. E é ali mesmo, porque no interior do modelo 1983 tem roupas de cama e banho, com espaço suficiente para camisas sociais, discos de vinil, sapatos, produtos de higiene e um extenso “etc”.
Com 1,60 metro de altura e pesando 45 quilos – “em outras épocas, cheguei aos 60”, orgulha-se –, Lourival se encaixa perfeitamente no Fusca, apelidado de Pois é. Para dormir, ele desce o banco do carona e estica o colchonete, retirando cobertor, colcha e travesseiro do bagageiro ao fundo. Se vem a vontade de ler, basta abrir o porta-luvas, uma verdadeira caixinha de surpresas: lá tem Bíblia, gravatas, remédios... Se a vida imita a arte ou a arte imita a vida, ninguém foi capaz ainda de responder, mas, sem dúvida, a história de Lourival, guardadas as devidas proporções, se parece muito com a da inglesa interpretada pela atriz Maggie Smith no filme A senhora da van (The lady in the van), em cartaz na cidade.
Lourival não viu o filme. Há muito não vai ao cinema.
Enquanto a vida não engata uma primeira, o homem de barba comprida e cabelos fartos, sem um fio branco na cabeça, vive da caridade alheia. É um vizinho que serve um prato de comida, o comerciante que não cobra pelo cigarro picado, outro morador pronto para ajudar no que pode... O banheiro é o de um bar, de porta branca, no bairro que ele conhece bem, pois residiu lá há alguns anos antes de dar seta e estacionar.
Se lhe faltam posses, não é raro vê-lo rodeado de amigos. Alguns levam até cadeira para ouvir os casos. “Trabalhei em Caiena (capital da Guiana Francesa), estive na Serra do Navio (AP), no Monte Roraima e no Iraque, sempre operando guindastes pesados, de 300 toneladas”, gaba-se o hoje solitário morador do Fusca. Como um recado do destino, a placa do veículo traz o nome Porto Firme, município da Zona da Mata. “Antes, o carro ficava uns metros mais abaixo, até que uma árvore caiu e tive que me mudar. Não tenho medo de ficar aqui, confio em Deus.
MARCAS DA VIDA Se escapou das chamas, devido ao sol pleno o verde da lataria do Pois é já vai perdendo o brilho, o que não desencoraja o olhar de carinho de Penosa – o apelido vem do gosto que ele tinha, sempre na volta das viagens, “do Oiapoque ao Chuí”, de preparar o popular galopé. “Eu chegava e o povo já dizia: ‘Vamos pegar uma penosa (galinha)’”, diverte-se. Passada a época das viagens, o ex-motorista lamenta já não poder sair com o carro, ainda no nome do antigo proprietário. “Além disso, preciso renovar meus documentos”, diz, mostrando a primeira carteira de habilitação, datada de 15 de abril de 1979. Mas nem tudo parou no tempo: Penosa tem seus compromissos, vai regularmente ao dentista e ao médico, em BH. Se há necessidade de sair mais arrumado, pega a calça social no banco de trás e pede a alguém para passar. Só a vida amorosa, garante, saiu de cena.
Diante do castigo de sol e chuva, como proteção do interior da “residência” há pedaços de papelão nos vidros; do lado de fora, sobre a entrada de ar, entre o para-brisa e o capô, Pois é exibe uma telha de cerâmica. “É para não passar água de chuva. No porta-malas, guardo minhas ferramentas”, explica, no momento em que aponta também uma marca no para-choque dianteiro: “Foi coice de uma égua”.
Nas suas andanças de “cigano”, Lourival viu que “o ser humano, viajando, aprende”.
Poesia e saudade A música tem lugar de destaque no Fusca – e na vida de Penosa. Na frente, estão enfileirados discos de vinil de Roberto Carlos, Paulinho da Viola, Maria Bethânia, Simone, trilhas de antigas novelas, de Roxette, dupla pop sueca, e do cantor português Francisco José. “Tem também muitas fitas cassete por aí”, conta Lourival, que, na procura, encontra um dicionário grosso. O volume é a deixa para ele contar mais sobre seis décadas de vida.
Lourival perdeu a mãe cedo, foi criado pelos avós em BH e estudou nas escolas estaduais Barão de Macaúbas, na Floresta, e José Bonifácio, em Santa Tereza, ambas na Região Leste. Completou só o antigo primário, mas mostra que foi bom em português. Tanto que recita, sem errar, os versos da poesia Bárbara bela, de Alvarenga Peixoto (1744-1792): “Bárbara bela/do Norte estrela/que o meu destino/sabes guiar/de ti ausente/triste, somente/as horas passo/a suspirar”.
Pausa e mais um capítulo da história. Aos 22 anos, Lourival conta que foi trabalhar numa grande empresa de guindastes e transportes. Casou-se no ano seguinte. Dessa união, foram duas filhas e um filho; outra gerou cinco filhas. Ao falar da família, com a qual diz não manter contato, Lourival fecha os olhos. “Sente saudade?”, pergunta o repórter, que não ouve palavras, apenas vê lágrimas sentidas. Enxugando os olhos, Lourival lembra que completará 62 anos no próximo dia 30. Tudo o que quer de presente é um abraço.
O comerciante João da Cruz de Oliveira, proprietário do Bar do João, a quem Penosa considera “um pai”, acredita que viver assim é muito triste. Dono de um depósito de material de construção, Ronaldo Otoni Arêdes diz que Lourival é muito “gente boa” e trabalhou para ele como carreteiro. Morador de casa em frente do Fusca, o aposentado Antônio Donizete de Oliveira o olha com simpatia e não entende o porquê de uma situação como essa.
Morando a poucos metros de Penosa, a professora de história Haidê Mendes conta que viu o filme A senhora da van e logo identificou semelhanças entre os tipos, mas com uma diferença marcante: “Meu vizinho fez vários amigos aqui, ao contrário da inglesa Mary Shepherd, que muitos não toleravam”. Com seu jeito manso, Lourival avisa que gostaria de recuperar o lote, vender o Pois é e construir dois cômodos e um banheiro. “Tenho esperança”, confessa.
A ARTE E A VIDA
Atriz de primeira grandeza, a inglesa Maggie Smith, de 81 anos, é mais conhecida pelos papéis de mulheres finas, aristocráticas, com um quê de arrogância e altivez. Mas no filme A senhora da van, do diretor Nicholas Hytner, ela desconstrói totalmente essa imagem, encarnando com a costumeira sensibilidade a personagem que viveu por 15 anos dentro do seu veículo, no bairro londrino de Camden Town, mantendo um segredo que é de bom tom não revelar. Um escritor a observa, a tolera e relata sua vida. A história se passa nas décadas de 1970 e 1980. Hoje, bem longe, do outro lado do Atlântico, o mineiro Lourival também faz do carro o lar onde abriga lembranças, segredos, histórias e – claro – esperança.