Perto da bilheteria, onde costumava ficar a postos de segunda a sexta-feira, à noite, e muitas vezes nos fins de semana, Hugo nota as mudanças que o prédio projetado pelo arquiteto italiano Raffaello Berti (1900-1972) e inaugurado em 1944 sofreu ao longo do tempo. “O bairro também...não reconheço o Santa Tereza onde nasci, na Rua Mármore, e cresci com muitos amigos. Era bairro de compadres, todos se conheciam. Houve descaracterização, o que não me agrada”, revela, com pesar.
Como estava sempre com o tabuleiro que pesava 10 quilos, o menino baleiro de família numerosa, o mais velho de 12 irmãos, não podia se dar ao prazer de assistir aos filmes, contentando-se com os letreiros na fachada, os cartazes nos cavaletes e a movimentação constante nas filas, com destaque para os casais de namorados fãs de drops. “Não dava tempo, o trabalho era duro. Só quando deixei a atividade, já adolescente, é que pude entrar e assistir”, recorda-se. Mas assim que enxergou, no escurinho do cinema, a luz se transformando em imagens, Hugo entendeu o que eram, de verdade, ação e emoção. Em minutos, a vida real ficava lá fora, e, diante dos olhos maravilhados, as balas de açúcar viravam de revólver e ricocheteavam no disparo de mocinhos e bandidos. No meio do tiroteio, o índio pele-vermelha, coitado, passava aperto no “Velho Oeste”.
E foi desse jeito que o recém-aposentado, casado há 50 anos com Lucília Maciel Cruz e pai de três filhas, se tornou admirador de Randolph Scott (1898-1987), astro dos bangue-bangues nas décadas de 1940 e 1950, acompanhou o drama romântico Casablanca, estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, conheceu a marca do Zorro e pulou na cadeira – “que era de madeira”, ressalta – com as aventuras do Capitão Marvel. Quando tocava o prefixo, um sinal retumbante de que a fita estava para começar, e as luzes se apagavam, Hugo entrava no universo, que terminava em letras The End.
Novos tempos, novos olhares. “Já não vou tanto ao cinema, mas não perdi o hábito, pois tenho mais de 200 DVSs em casa. A televisão de 48 polegadas virou meu cinema particular”, informa.
PURA NECESSIDADE O mundo era outro, Belo Horizonte, então, nem se fala, observa Hugo: “Era uma cidade sem violência, só tinha mesmo ladrão de galinha.
Filho do militar João Vermelho da Cruz, que servia no 5º Batalhão da Polícia Militar e atuou como técnico dos times de futebol Santa Tereza e América, Hugo guarda outras boas recordações do cinema do bairro. “Na época, era cine e teatro, então artistas de renome se apresentavam ali, entre eles Sílvio Caldas (1908-1998), Nélson Gonçalves (1919-1998), Orlando Silva (1915-1978) e Vicente Celestino (1894-1968).” Sobre o último cantor, de quem havia visto o filme O ébrio, ele traz à tona uma cena memorável. “Vicente Celestino veio fazer um show aqui.
Olhando ao redor do cinema, Hugo explica que a Praça Duque de Caxias era completamente diferente. A Igreja de Santa Tereza, por exemplo, dava entrada pela Rua Eurita. Do lado, pontificavam os bares do Espíndola e do Geninho. “A vida já foi mais doce, antes se vivia melhor. Andávamos muito a pé. Hoje tem gente demais obesa e muitos dissabores. Trabalhar cedo demais nunca foi problema para mim.”
VIGOR Quem se encontra com Hugo, pela primeira vez, custa a crer que ele está perto dos 80 anos. Bem disposto, de memória prodigiosa e em boa forma, o ex-baleiro revela o segredo: caminha todos os dias e faz hidroginástica. Já na sala de casa, no Bairro Dom Cabral, fica satisfeito ao mostrar a foto do pai, de farda, de quem guarda fiel orgulho. Depois de deixar o tabuleiro, Hugo deu à vida novos rumos. Durante 10 anos, trabalhou numa empresa de capitalização, ingressando depois numa firma de construção civil, na qual ficou 50 anos, a maior parte no setor de compras. “Eu me aposentei e continuei trabalhando.” Só deixou o batente em setembro do ano passado. No finalzinho da conversa, outro lado da história. O homem católico faz questão de dizer que ajudou o padre Pedro Souza Pinto (Pedrinho) na construção da Igreja do Bom Pastor, perto de sua casa. “Ela está completando 50 anos este mês”, comemora..