Ontem, pela manhã, na ermida do século 18 que guarda a imagem da padroeira esculpida por Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1739-1814), Edésio e José Eustáquio, acompanhados das famílias, assistiram à missa das 8h e receberam bênção especial para a jornada, que tem apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Pastoral da Cultura (Nepac) da PUC Minas e do grupo Caminhada Mineira, do qual participam. Para entrar no clima – frio na temperatura e acalorado na expectativa –, a dupla pernoitou na hospedaria no alto da serra e conferiu mais uma vez o roteiro previsto de 37 paradas em cidades, distritos e pequenas comunidades. Como ninguém é de ferro, estão programados cinco dias de descanso e mais dois para solenidades de encerramento. “Estou com a canela coçando”, brincou José Eustáquio diante da capela envolta na neblina.
A primeira parada, a 28 quilômetros do santuário mineiro, será no distrito de Morro Vermelho, em Caeté, célebre pelo início da Guerra dos Emboabas, nos primórdios do século 18.
Nos dois primeiros dias, os peregrinos terão a companhia do coordenador da Pastoral Cultural da Arquidiocese, professor Josimar Azevedo. “Nada impede que, durante a caminhada, outras pessoas sigam conosco”, convidam. Para quem quiser ficar informado, Edésio e José Eustáquio vão manter um blog (Diário dos peregrinos) no endereço eletrônico www.santuarionsdapiedade.org.br e postar fotos e contar as novidades no www.caminhadamineira.com.br. Mas eles avisam que querem distância do mundo real. “A caminhada é uma volta para casa no sentido de mergulho interior. Significa autoconhecimento e contato com a natureza. É um período de transformação”, ressalta Edésio, morador do Bairro Jardim América, Oeste de BH, casado com Ivete e pai de três filhos.
PAIXÃO EM MOVIMENTO O amor pela caminhada, e, principalmente, pelas peregrinações espirituais, surgiu há cinco anos, quando José Eustáquio se aposentou. No seu currículo já estão a travessia Caminhos da Luz, de Tombos ao Pico da Bandeira, no Leste de Minas, no total de 200 quilômetros; pela Praia do Cassino, entre Rio Grande-Chuí (RS), com 220 quilômetros à beira-mar; e a Romaria da Fé, de Lavras a Aparecida, de quase 300 quilômetros. A amizade entre os dois começou no segundo roteiro e foi aí que José Eustáquio comentou sobre o desejo de seguir da Serra da Piedade a Aparecida, algo inédito, de ponta a ponta, projeto sobre o qual tinha conversado com o coordenador do Caminhada Mineira, Marcelo Pereira, ali presente.
“Já tinha feito alguns trechos, mas não por inteiro. Então, pesquisei e vi que esse caminho estava sendo estruturado, com a instalação de tótens”, explica José Eustáquio, certo da importância de se divulgar o caminho no país e exterior.
Ao longo da estrada, os dois vão pernoitar em paróquias, galpões e casas oferecidas por pessoas das comunidades, tudo previamente detalhado com a equipe do Nepac. Norma Sueli adianta que dará apoio logístico: seguirá de carro e estará nos pontos de chegada, sem interferir no roteiro e nos objetivos do marido e do amigo. Para Marcelo Pereira, a iniciativa é fundamental para dar vida ao Crer. “É preciso, no entanto, que outros grupos de caminhantes sigam o exemplo e divulguem o projeto, para que se torne conhecido internacionalmente”, diz.
BOLHAS E SILÊNCIO A viagem tem mistérios, segredos e surpresas. No fim de cada percurso, à tarde, o mais indicado é tomar um banho e conferir o estado dos pés. Depois, vale uma boa prosa. “Carregamos no máximo seis quilos na mochila, botas especiais para caminhada e roupas leves, mas todo cuidado com os pés é pouco”, orienta Edésio, mineiro de Rio Vermelho, formado em direito, hoje aposentado. Ele afirma que bolhas sempre aparecem nos pontos de atrito e José Eustáquio acrescenta que já tem esparadrapos especiais para protegê-los.
Edésio tem uma história curiosa, que mostra bem a relação do caminhante com as bolhas.“Uma vez, tive uma que me tirou do sério e não sabia o que fazer. Mas, aos poucos, vi que ela estava me dominando, quando deveria ser o contrário.
José Eustáquio segue as regras da boa saúde, faz caminhadas diárias de 25 quilômetros, consultou uma nutricionista e diz que costuma emagrecer nas andanças mais extensas. “Grande parte desses caminhadas é em estrada de terra. Nas rodovias, é preciso ficar esperto, em especial quando não há acostamento.”
Se a conversa entre os dois parece bem animada, com os dias de caminhada vai minguando. “O silêncio é muito importante e vai chegando aos poucos. Às vezes, um vai na frente, outro segue mais distante, cada um no seu ritmo. Afinal, não é chegada que queremos, mas a caminhada”, explica Edésio. “A gente exercita também a paciência, a reflexão, experimenta todos os sentimentos.”
Saiba mais: Caminho Religioso da Estrada Real
Inspirado no Caminho de Santiago de Compostela, entre França e Espanha, o Caminho Religioso da Estrada Real (Crer) começou a ser planejado pelo governo de Minas, municípios e instituições parceiras há três anos, para que brasileiros e estrangeiros possam percorrê-lo a pé, de bicicleta ou a cavalo. O trajeto será demarcado com sinalização, no sentido de orientar o viajante, já que muitas partes do percurso são em estradas de terra. De acordo com informações da Arquidiocese de Belo Horizonte, trata-se de um caminho turístico de peregrinação e meditação, que abrange 86 municípios. Os peregrinos vão percorrer as 37 cidades que compõem a rota principal, mas há outras 49 que formam a área de influência.