Dupla de amigos faz jornada de 820 quilômetros até Aparecida, em São Paulo

Amigos que se conheceram em peregrinação vão percorrer a rota que separa as protetoras de Minas e do Brasil, pelo Caminho Religioso da Estrada Real

Gustavo Werneck

Edésio Martinho de Oliveira, de 58 anos, e José Eustáquio de Souza Matos, de 62, partem da Serra da Piedade em direção a Aparecida, em São Paulo - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press

Nas mãos, o cajado. Na mochila, o essencial. E, na cabeça, a determinação de percorrer uma rota histórica e espiritual de 820 quilômetros, com início na Serra da Piedade, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e término em Aparecida (SP). A distância não assusta nem um milímetro, pois “mais vale o caminho do que a chegada ao destino”, asseguram, em sintonia fina, os amigos Edésio Martinho de Oliveira, de 58 anos, morador da capital, e José Eustáquio de Souza Matos, de 62, residente no município vizinho de Vespasiano. Nesta manhã, com saída prevista para as 6h, os aposentados se tornam pioneiros nos Passos do Crer (Caminho Religioso da Estrada Real), com 40 dias de viagem previstos – totalmente a pé, é bom ressaltar – pela estrada que une os santuários da padroeira de Minas, Nossa Senhora da Piedade, e do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.

Ontem, pela manhã, na ermida do século 18 que guarda a imagem da padroeira esculpida por Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1739-1814), Edésio e José Eustáquio, acompanhados das famílias, assistiram à missa das 8h e receberam bênção especial para a jornada, que tem apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Pastoral da Cultura (Nepac) da PUC Minas e do grupo Caminhada Mineira, do qual participam. Para entrar no clima – frio na temperatura e acalorado na expectativa –, a dupla pernoitou na hospedaria no alto da serra e conferiu mais uma vez o roteiro previsto de 37 paradas  em cidades, distritos e pequenas comunidades. Como ninguém é de ferro, estão programados cinco dias de descanso e mais dois para solenidades de encerramento. “Estou com a canela coçando”, brincou José Eustáquio diante da capela envolta na neblina.

A primeira parada, a 28 quilômetros do santuário mineiro, será no distrito de Morro Vermelho, em Caeté, célebre pelo início da Guerra dos Emboabas, nos primórdios do século 18.
Ao lado da mulher,  Norma Sueli Carvalho, José Eustáquio informa sobre a média diária de caminhada, em torno de 32 quilômetros, ou 4,5 km/h. “Se começarmos às 6h, terminaremos por volta das 2 da tarde. Esta época é boa para caminhar. Dá para andar com tranquilidade, contemplar a paisagem, enfim, fazer parte da vida, o que é bem diferente de simplesmente ver a vida passar”, conta o paulista de Riolândia, que se considera mineiro por morar no estado desde bem jovem.

Nos dois primeiros dias, os peregrinos terão a companhia do coordenador da Pastoral Cultural da Arquidiocese, professor Josimar Azevedo. “Nada impede que, durante a caminhada, outras pessoas sigam conosco”, convidam. Para quem quiser ficar informado, Edésio e José Eustáquio vão manter um blog (Diário dos peregrinos) no endereço eletrônico www.santuarionsdapiedade.org.br e postar fotos e contar as novidades no www.caminhadamineira.com.br. Mas eles avisam que querem distância do mundo real. “A caminhada é uma volta para casa no sentido de mergulho interior. Significa autoconhecimento e contato com a natureza. É um período de transformação”, ressalta Edésio, morador do Bairro Jardim América, Oeste de BH, casado com Ivete e pai de três filhos.

PAIXÃO EM MOVIMENTO O amor pela caminhada, e, principalmente, pelas peregrinações espirituais, surgiu há cinco anos, quando José Eustáquio se aposentou. No seu currículo já estão a travessia Caminhos da Luz, de Tombos ao Pico da Bandeira, no Leste de Minas, no total de 200 quilômetros; pela Praia do Cassino, entre Rio Grande-Chuí (RS), com 220 quilômetros à beira-mar; e a Romaria da Fé, de Lavras a Aparecida, de quase 300 quilômetros. A amizade entre os dois começou no segundo roteiro e foi aí que José Eustáquio comentou sobre o desejo de seguir da Serra da Piedade a Aparecida, algo inédito, de ponta a ponta, projeto sobre o qual tinha conversado com o coordenador do Caminhada Mineira, Marcelo Pereira, ali presente.

“Já tinha feito alguns trechos, mas não por inteiro. Então, pesquisei e vi que esse caminho estava sendo estruturado, com a instalação de tótens”, explica José Eustáquio, certo da importância de se divulgar o caminho no país e exterior.
“Por enquanto, ainda é virtual, mas vamos fazer com que se torne real”, afirma, em um trocadilho com a Estrada Real e o Crer. Entusiasmada, a dupla planeja um livro narrando a experiência, dando dicas e orientando sobre os serviços encontrados, alimentação, monumentos e festas religiosas, já que fazem parte do roteiro várias cidades turísticas.

Ao longo da estrada, os dois vão pernoitar em paróquias, galpões e casas oferecidas por pessoas das comunidades, tudo previamente detalhado com a equipe do Nepac. Norma Sueli adianta que dará apoio logístico: seguirá de carro e estará nos pontos de chegada, sem interferir no roteiro e nos objetivos do marido e do amigo. Para Marcelo Pereira, a iniciativa é fundamental para dar vida ao Crer. “É preciso, no entanto, que outros grupos de caminhantes sigam o exemplo e divulguem o projeto, para que se torne conhecido internacionalmente”, diz.

BOLHAS E SILÊNCIO A viagem tem mistérios, segredos e surpresas. No fim de cada percurso, à tarde, o mais indicado é tomar um banho e conferir o estado dos pés. Depois, vale uma boa prosa. “Carregamos no máximo seis quilos na mochila, botas especiais para caminhada e roupas leves, mas todo cuidado com os pés é pouco”, orienta Edésio, mineiro de Rio Vermelho, formado em direito, hoje aposentado. Ele afirma que bolhas sempre aparecem nos pontos de atrito e José Eustáquio acrescenta que já tem esparadrapos especiais para protegê-los.

Edésio tem uma história curiosa, que mostra bem a relação do caminhante com as bolhas.“Uma vez, tive uma que me tirou do sério e não sabia o que fazer. Mas, aos poucos, vi que ela estava me dominando, quando deveria ser o contrário.
Então, passei a ignorá-la e sabe que acabei me esquecendo da dor?” conta o peregrino. O pé na estrada permitiu que Edésio se reinventasse. “Quando me aposentei, pensei que os dias seriam monótonos, mas enxerguei outro objetivo. Nasci em um lar católico e procuro fortalecer a espiritualidade, a harmonia. A natureza divina está presente o tempo todo na minha frente durante as caminhadas”, relata, lembrando que procura manter uma alimentação balanceada, fazer musculação e tomar muita água.

José Eustáquio segue as regras da boa saúde, faz caminhadas diárias de 25 quilômetros, consultou uma nutricionista e diz que costuma emagrecer nas andanças mais extensas. “Grande parte desses caminhadas é em estrada de terra. Nas rodovias, é preciso ficar esperto, em especial quando não há acostamento.”

Se a conversa entre os dois parece bem animada, com os dias de caminhada vai minguando. “O silêncio é muito importante e vai chegando aos poucos. Às vezes, um vai na frente, outro segue mais distante, cada um no seu ritmo. Afinal, não é chegada que queremos, mas a caminhada”, explica Edésio. “A gente exercita também a paciência, a reflexão, experimenta todos os sentimentos.”

Saiba mais: Caminho Religioso da Estrada Real


Inspirado no Caminho de Santiago de Compostela, entre França e Espanha, o Caminho Religioso da Estrada Real (Crer) começou a ser planejado pelo governo de Minas, municípios e instituições parceiras há três anos, para que brasileiros e estrangeiros possam percorrê-lo a pé, de bicicleta ou a cavalo. O trajeto será demarcado com sinalização, no sentido de orientar o viajante, já que muitas partes do percurso são em estradas de terra. De acordo com informações da Arquidiocese de Belo Horizonte, trata-se de um caminho turístico de peregrinação e meditação, que abrange 86 municípios. Os peregrinos vão percorrer as 37 cidades que compõem a rota principal, mas há outras 49 que formam a área de influência.

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