Vítimas relatam a dor que carregam após sofrer estupro

Em Minas, 11 mulheres, em média, são violentadas por dia e ao menos dois casos foram praticados coletivamente

Sandra Kiefer Márcia Maria Cruz


Vinte e nove anos se passaram desde que a dona de casa de Belo Horizonte L.P.L, de 53 anos, foi violentada por um desconhecido, mas a ferida ainda não cicatrizou.
Muito pelo contrário: fica exposta quando acompanha o drama de outras mulheres estupradas, como a adolescente de 16 anos numa comunidade do Rio de Janeiro, atacada por 33 homens. L. destaca que, mais do que a dor física, a violência sexual deixa marca na alma das vítimas que não conseguem reconstruir a vida depois do trauma. “Difícil dizer que superei totalmente, tamanha é a invasão”, diz, ao lembrar de 8 de julho de 1986, quando um homem invadiu sua casa no Bairro Carlos Prates, na Região Noroeste, e praticou o crime.

Em Minas, em média, 11 mulheres são estupradas por dia, segundo dados da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) referentes aos quatro primeiros meses deste ano. Só no Ambulatório de Saúde Mental de Mulheres do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que atende vítimas de violência sexual em Belo Horizonte, foram 21 denúncias de estupro entre janeiro e abril, sendo que, em cinco casos, as mulheres relataram ter feito ingestão de álcool e/ou drogas e sido estupradas a seguir, lembrando parcialmente do que ocorreu depois.


Entre os cinco estupros de mulheres envolvendo drogas atendidos nos quatro primeiros meses de 2016 no HC, pelo menos duas das vítimas revelaram ter sido violentadas coletivamente. Segundo o relato do prontuário, uma estudante viajou com os primos para uma festa no interior de Minas e acordou na praça, entre quatro rapazes, que contaram o que haviam feito com ela. No outro caso, uma estudante da UFMG bebeu e usou drogas ao participar de uma festa, sendo estuprada por mais de dois universitários dentro do câmpus, atrás de árvores.
Neste último estupro, a mulher engravidou e teve acesso ao aborto legal.
"Eram duas da tarde e tinha colocado meu filho para dormir. Foi uma barbárie só... Levou tempo para eu falar sobre o que ocorreu, por causa da falta de compreensão. É preciso ter coragem para poder falar", L.P.L, de 53 anos, que foi estuprada aos 24, depois de um homem invadir sua casa - Foto: Jair Amaral/EM/D.A Press
“Não há como afirmar se os outros casos foram ou não estupros múltiplos. É muito difícil para a vítima decidir se abrir e fazer uma revivência do que passou”, afirma a psiquiatra Gislene Valadares, que atende no ambulatório do HC e é presidente da Associação Brasileira de Prevenção e Tratamento de Ofensas Sexuais (ABTOS). Segundo a médica, as denúncias de abusos de álcool e drogas seguidos de abusos sexuais estão aumentando, não apenas nos relatos do Sistema Único de Saúde (SUS), mas também nos coletivos de mulheres criados dentro da própria universidade. “Menos de 30% das mulheres violentadas procuram ajuda especializada. “Na classe média alta, estão cada vez mais comuns as festas regadas a drogas, em que os problemas são resolvidos nos consultórios particulares e nas clínicas de aborto clandestinas”, denuncia.

As estatísticas são alarmantes ao mostrar que, em um ano, a Seds registrou 4.348 casos de violência sexual, contabilizando estupros consumado e tentados com mulheres adultas e consumado e tentado com vulneráveis (vítimas menores de 14 anos). Considerando essas quatro tipificações, Minas registrou, de janeiro a abril de 2016, 1.355 casos de violência sexual. Desses, 437 de estupros consumados. Cem casos foram registrados no mês passado (veja quadro).

Apesar de os dados no estado apresentarem queda gradual nos primeiros quatro meses de 2016 (de 352 em janeiro para 314 em abril), os números apresentam oscilação na capital mineira e, segundo o último cálculo, estão em alta. Em Belo Horizonte, a Seds contabilizou 41 casos de violência sexual em janeiro, 55 em fevereiro, 39 em março e 58 em abril. O aumento percentual foi de 41% nos primeiros quatro meses do ano.
- Foto: Secretaria de Estado de Defesa Social
L. mudou de endereço e desde 1988 faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico no HC. Quando foi violentada, ela estava em casa cuidando do filho bebê. “Eram duas da tarde e tinha colocado meu filho para dormir.
Estava me preparando para almoçar. Um homem bateu no portão, perguntando pelo meu marido. Conversei com ele sem abrir o portão. Ele me pediu um copo d’água. Fui até a cozinha pegar e, quando virei, me deparei com ele já dentro da minha casa. Daí foi uma barbárie só”, recorda.

SEM FUGA


Na época, o marido e outras pessoas próximas a desencorajaram de apresentar a denúncia, mas ela levou a queixa adiante. “As vítimas, com certeza, por causa do desequilíbrio mental que o trauma nos causa, acham que realmente têm culpa pelo que ocorreu. Daí a vida acaba, deixamos de viver”, afirma. Além do sofrimento decorrente do estupro, L. não sabia como lidar com o abuso.
“Levou tempo para eu falar sobre o que ocorreu, por causa da dificuldade que a gente encontra, a falta de compreensão. É preciso ter coragem para poder falar. A gente esconde da maioria das pessoas. Depois de anos, como tinha muitos problemas de saúde, comecei o tratamento. Os médicos não conseguiam entender, foi quando encontrei a saúde mental do Hospital das Clínicas”, lembra.

O choro vem todas as vezes que a lembrança é acionada. “É como se quiséssemos fugir, não querer ver e ouvir esse tipo de acontecimento. É difícil lidar com isso”, diz, sobre o estupro coletivo da jovem em uma comunidade do Rio de Janeiro. Depois do atentado, o casamento deteriorou. O marido levantava suspeição contra ela. “Meu ex-marido não queria que eu denunciasse. Dizia que era muita exposição e que não daria em nada. Houve um momento que havia dúvida até da parte dele. O parceiro não consegue superar”. L desenvolveu síndrome do pânico e outras doenças psicológicas e físicas. Atualmente, ela faz acompanhamento psicológico mensal..