Buritizeiro, Pirapora, Três Marias e Várzea da Palma – Os troncos enrugados dos maçambês e as cascas cinzentas dos gonçalos foram rompidos pelos dentes de aço das motosserras, formando clareiras extensas na vegetação que deveria proteger o Rio São Francisco. Picadas e empilhadas ao relento, apodrecendo aparentemente sem qualquer função, essas árvores poderiam contribuir para impedir que a água das chuvas trouxesse sedimentos que tornam o rio mais raso, permitiriam maior tempo de infiltração das precipitações no solo e dariam mais estabilidade aos barrancos nas margens. Em vez disso, em Buritizeiro, Pirapora e Várzea da Palma, no Norte de Minas, foram eliminadas para dar espaço a pastagens, ranchos irregulares na beira do rio, pontos de lançamento de barcos e áreas de plantio não licenciado de mandioca, milho, feijão e bucha vegetal. A tática mais comum para ludibriar a fiscalização por barcos tem sido deixar uma fina, porém densa faixa de árvores e bosques na beirada do manancial, como um tapume, derrubando com as máquinas a mata ciliar que fica atrás.
A reportagem do Estado de Minas encontrou pelo menos 15 pontos de desmates ocorridos nos últimos dois anos em matas ciliares. Nessas propriedades privadas, a Área de Proteção Permanente (APP) teve 41 hectares (ha) suprimidos só nos 115 quilômetros entre a represa de Três Marias (Região Central) e a foz do Rio das Velhas, em Várzea da Palma (Norte de Minas). Uma pequena amostra dentro da área mais crítica de devastação das florestas que cobrem as margens do Velho Chico em Minas Gerais, contida nos 600 quilômetros entre Três Marias e a foz do Rio Carinhanha, na Bahia. Só nesse local, a área de rio e de mínima vegetação de margem soma 49.144 ha, mas a mata ciliar não passa de 10% dessa cobertura, cerca de 6,7 vezes abaixo da média que o cumprimento do Código Florestal permite.
BARRA DO GUAICUÍ Em Várzea da Palma, o ponto mais conhecido pelos turistas e pescadores é o encontro das águas verdes do Rio das Velhas com o curso barrento do Rio São Francisco, na Barra do Guaicuí. Vários pescadores já testemunharam o desmoronamento das margens e culpam o assoreamento por essa destruição. “As barrancas vão descendo, trazendo a árvore e o mato que estiverem por cima. Se continuar assim, os rios vão ficar sem água, não vai passar mais barco e os peixes, que já estão difíceis, vão sumir de vez”, disse Raimundo Mauro Justino, de 63 anos, que pesca no local desde criança. No encontro dos dois grandes rios, o Velhas chega a ter 185 metros de largura e o São Francisco 310 metros, o quer requer, segundo o Código Florestal, faixas de mata ciliar de 100 e 200 metros, respectivamente, a partir das margens. Contudo, o afluente não tem cobertura de mais de 28 metros (28%) e o Velho Chico, de 57 metros (28,5%).
Para encontrar os desmates mais recentes, só cruzando os dados de GPS do satélite e a orientação por mapa. O que nem sempre tem precisão, já que algumas estradas de terra rurais terminam de repente, trilhas desaparecem com o mato alto, cercas e porteiras impedem acessos. Por dentro da mata ciliar que margeia o Rio São Francisco, a dificuldade é justamente a densidade da floresta, os bosques internos fechados e os emaranhados de espinhos. Numa dessas propriedades, uma fazenda de gado de corte em Várzea da Palma, a reportagem chegou a uma clareira de 2 hectares aberta para ampliar pastagens e formar um rancho de pesca na margem do São Francisco. Naquele ponto, a largura do rio é de 382 metros, o que requer uma faixa de mata ciliar de 200 metros, mas além do desmatamento recente, a faixa florestal não passa de 60 metros (30%).
Nos pastos dessa propriedade, a madeira, que foi removida há cerca de um ano e meio, continua empilhada próximo às cercas que dividem os pastos. São montes altos e extensos de toras que parecem abandonadas. Ressecaram e algumas já apodrecem sem ter qualquer uso na fazenda, demonstrando que o objetivo era apenas ganhar o espaço que as espécies ocupavam.
"Os peixes estão desaparecendo"
Debaixo da sombra de um angico, na beira do Rio São Francisco, a pescadora Maria Alzira Rodrigues, de 55, lembra dos tempos em que os peixes eram fisgados com facilidade em Buritizeiro, no Norte de Minas. “Minha vida foi na beirada desse rio. E essas beiras mudaram demais. Estão cortando tudo quanto é lenha, acabando com tudo. Por isso secou demais as águas e os peixes estão desaparecendo”, suspira. O local onde ela e o filho de 11 anos atiram suas iscas fica perto da ponte férrea tombada pelo patrimônio, entre a cidade e Pirapora. “Aqui, o rio chegava a encobrir a gente, mas hoje mal bate na canela. Tem quem atravesse de um lado ao outro sem molhar a barriga. Está uma tristeza”, afirma. Naquele ponto, o Velho Chico se agiganta e tem 660 metros de largura. A mata ciliar que o protege, pelo Código Florestal, deveria ter 500 metros em cada margem, mas no ponto mais denso não passa de 80 metros.
Seguindo floresta adentro apenas mais 100 metros e a mata simplesmente desaparece numa clareira de 20 hectares, que vem sendo aberta pouco a pouco para comportar o gado. Pelo histórico das imagens de satélite, até 2013 ainda havia, pelo menos, uma estreita linha de árvores na beira, mas que desapareceu. Os pescadores que frequentam o local contam que o espaço já foi de uma mata agradável, que dava sombra para lançar os anzóis e abrigo a pássaros. “A mata acabou em muitos pontos como esse. Os barrancos vão para dentro do rio, deixando ele raso. E o resultado é este aqui: a tarde inteira pescando só consegui uma curimatã de 2,5 quilos. Atrás das árvores que arrancaram, ainda tínhamos lagoas marginais que eram berçários de peixes e secaram para virar pasto”, conta o pescador Olímpio Rodrigues da Silva, de 60.