Buenópolis – O caso da menina Raiane Aparecida Cândida, de 10 anos, que foi estuprada, morta e teve o coração arrancado pelo assassino, quebrou o ritmo tranquilo da zona rural de Buenópolis, na Região Central de Minas deixando em choque moradores de uma comunidade pacata, onde todo mundo se conhece. Para especialistas, o crime demonstra a expansão da criminalidade no interior, especialmente da violência sexual (leia texto nesta página).
O crime, que ganhou repercussão internacional, ocorreu numa área isolada, caracterizada por morros, matas fechadas, casas distantes uma das outras e poucos habitantes. “Quando a menina sumiu, cheguei a falar para a polícia que pensava que ela poderia ter sido comida por uma onça. Jamais imaginaria que ela pudesse ser atacada por um ser humano em um lugar tão tranquilo, onde todo mundo é amigo”, conta a auxiliar de enfermagem Evane Margareth Viveiros Costa, de 54, tia de Raiane.
“Ficamos muito chocados. A gente nunca imaginou que aqui pudesse acontecer um ato de violência desse. Seriema é o lugar mais quieto do mundo”, diz a lavradora Zaira Aparecida dos Santos, vizinha da família da vítima na comunidade distante 30 quilômetros da sede de Buenópolis. “Aqui tem poucos moradores, quando aparece algum desconhecido, a gente acha estranho”, afirma Plácido de Jesus Silva, marido de Zaira. “Foi uma tragédia. Nunca houve esse tipo de coisa nessa região”, completa o agricultor Raimundo Gilson Abreu, de 24.
A garota foi estuprada e morta na manhã de 1º de junho. Jairo Lopes, de 42, confessou ter abordado a vítima logo depois que ela saiu de casa para caminhar até o ponto onde pegaria uma van que rodaria seis quilômetros até chegar à escola na comunidade de Salobro, também na zona rural do município. O homem confessou que, após enforcar e estuprar a menina, arrancou o coração da vítima, para “ter certeza de que ela estava morta” e jamais o denunciaria. Com tamanha brutalidade, o crime ganhou repercussão nacional e internacional, com divulgação em jornais e sites da Europa.
O autor confesso foi capturado por um grupo de vaqueiros numa fazenda no município de Joaquim Felício, depois de seis dias de uma intensa caçada, que envolveu dezenas de policias militares e moradores, helicóptero e cães farejadores. Logo depois de ser preso, sofreu tentativa de linchamento por populares. Inicialmente, foi levado para Curvelo e, por questão de segurança, na noite de quinta-feira, foi transferido para presídio de Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Foragido
Alegando ser trabalhador rural, Jairo Lopes, que chegou à região há cerca de um ano e meio, morava com sua companheira, conhecida como Cícera, numa fazenda na localidade de Saquinho, próximo de Seriema. Aproveitando-se do isolamento da área, vivia escondido na região, adotando o nome falso de “Adauto”, já que era foragido da Justiça de Montes Claros, onde responde pelos crimes de tentativa de homicídio, roubo e estupro. Ele conseguiu escapar do Presídio Alvorada, na cidade do Norte de Minas, em 2012. Ao ser capturado após o ritual de monstruosidade contra Raiane confessou mais dois homicídios contra adultos, sendo que também já era acusado de abuso sexual contra duas crianças no distrito de Engenheiro Dolabella, no município de Bocaiuva.
Raiane morava com o pai, Sebastião Costa, numa casa simples, ao lado da moradia da avó, Estelita. A mãe da garota morreu há oito meses, de problemas cardíacos. Na manhã do crime, Raiane acordou, tomou café, vestiu o uniforme e pegou o caminho para andar cerca de 700 metros, passando por uma pequena mata, um córrego (que está seco) e três porteiras, até o ponto onde pegaria a van que a levaria à escola em Salobro. O agricultor Manoel Divino Costa, de 46, tio de Raiane, salienta que a menina sempre percorreu aquela distância sozinha, sem nenhuma preocupação para a família, “pois aqui nunca apareceu estranho e sempre foi muito tranquilo”.
No dia do crime, Jairo levantou por volta das 5h e se deslocou a pé por seis quilômetros até encontrar Raiane, que teria sido abordada logo depois de sair de casa. O homem, que, de acordo com as investigações premeditou o crime, arrastou a vítima por quatro quilômetros entre a vegetação até parar no meio de uma mata fechada, onde, depois de enforcá-la com uma corda, cometeu o estupro com a vítima deitada no chão, vestida com o uniforme escolar e com a mochila nas costas.
O fato de a região contar com lugares ermos e ter poucos habitantes ajudou na localização do corpo da menina, que foi deixado dentro da mata fechada, em um local de difícil acesso. “Como não passa muita a gente por aqui, nós seguimos as pegadas do homem e da menina dentro do mato”, conta o agricultor Manoel Divino, que, com outras cinco pessoas, localizou o corpo da garota com abdômen aberto e sem o coração, coberto de ramos, em 2 de junho, um dia após o desaparecimento dela.
A ferida exposta da violência
O estupro e morte da menina Raiane Aparecida Cândida em uma região isolada da zona rural de Buenópolis demonstra a banalização da criminalidade, revelando também que a violência e abusos sexuais contra crianças e adolescentes estão presentes em todos os lugares, apesar da subnotificação dos casos, afirmam especialistas ouvidos pelo Estado de Minas. “A afirmação de que o interior não tem violência não passa de uma lenda. A violência aumentou e muito. Quem mora no interior pode explicitar isso”, observa a professora e pesquisadora Maria Ângela Figueiredo Braga, do Departamento de Política e Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
“Mesmo sendo um fenômeno que perpassa todos os segmentos da nossa sociedade, sem distinção de classe, gênero, cor e outros, a violência é diferente no interior e nos grandes centros. No interior, o risco de tomar uma bala perdida no meio da rua é quase inexistente. Entretanto, ao voltar para casa, pode-se encontrá-la arrombada e com alguns de seus pertences sumidos”, comenta a pesquisadora.
Para o professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) Robson Sávio Reis Souza, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, crimes como o cometido contra Raiane mostram a dimensão da violência sexual contra crianças e adolescentes, que segundo ele, muitas vezes, é subnotificada devido à descrença na polícia e na Justiça, discriminação e falta de políticas públicas de acolhimento e proteção das vítimas. Ele lembra que o estudo “Estupros no Brasil: uma radiografia segundo dados da saúde”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que apenas 10% dos casos violência sexual contra crianças e adolescentes chegam ao conhecimento da polícia.
“Na verdade, quando um ou outro caso aparece e tem repercussão social e midiática aponta simplesmente para uma pontinha do iceberg. Por isso, não dá para falar de aumento desse tipo de violência. Trata-se de um crime muito mais comum, sistemático e permanente do que se imagina. Talvez, esse caso tenha ganhado mais visibilidade pelo nível de perversidade: arrancar o coração da vítima”, avalia Reis Souza.
Ele lembra ainda que Fórum Brasileiro de Segurança Pública projeta que tenham ocorrido entre 136 mil e 476 mil casos de estupro no Brasil no ano passado. “A projeção mais ‘otimista’ está baseada em estudos internacionais, como o National Crime Victimization Survey, que aponta que apenas 35% das vítimas desse tipo de crime prestam queixa”, relata.
O especialista afirma ainda que a violência sexual contra crianças e adolescentes atinge “todos os estratos sociais, nas cidades do campo. “Faz parte de uma cultura machista, opressora e violenta, que conta com a conivência de um sistema de justiça criminal que, nesses casos, via de regra, condena a vítima e protege o agressor, na maioria das vezes um parente próximo da vítima”, opina o especialista.
Dor por uma aluna aplicada
Raiane Aparecida Cândida, de 10 anos, era uma menina determinada e bem aplicada na Escola Municipal Verador Anézio Maciel de Figueiredo, onde cursava o 5º ano na localidade de Salobro, na zona rural de Buenópolis. “Neste ano, ela não matou nem um dia de aula. Ela era uma das melhores alunas da classe”, relata Jhony Reis Abreu, de 10 anos, que era colega de Raiane, assassinada no dia 1º. O estudante conta que a professora da menina, chamada Magda, passou mal ao tomar conhecimento do crime. “Todos os funcionários da escola choraram muito”, recorda-se.
A lavradora Divina Santos Ferreira, de 51, tia de Raiane, disse que considerava a sobrinha como filha e foi uma das primeiras pessoas a perceber o desaparecimento dela. “Eram duas da tarde. A gente achava que a Raiane tinha ido para a escola. Só que ela não voltou. Aí, entrei em desespero”, afirma Divina, revoltada com o caso. “A gente fica muito triste e queria que ela voltasse. Mas sabemos que ela não vai voltar mais”, lamenta.